019.FURANCUNGO-Operacionalidade

De 25 Maio a 13 Julho 1970
Aquando do início da construção da barragem de Cahora Bassa (1969) e a par da intensificação operacional e do sucesso das nossas tropas no Cabo delgado e Niassa, o inimigo, com os seus recursos de então, concentrou as suas acções no distrito de Tete. Daqui resultou a necessidade estratégica do reforço dos efectivos naquela região. Estacionada em Sone, a nossa companhia, foi destacada para Furancungo contribuindo para a concretização daquele objectivo. Quando fomos colocados em Sone nem por sonhos nos ocorreu a eventualidade de entrarmos em ambientes operacionais de risco até ao fim da comissão e por isso foi surpreendente a nossa ida para Furancungo, no distrito de Tete, fronteira com a Zâmbia e Malawi.
Obedecendo... avançamos. 
Em Sone deixamos um contingente mínimo e o grosso da companhia foi deslocada para Furancungo.
Tambara e Canxixe ficaram com alguns militares reforçados por milícias locais.
Sone/Moatize 180Km. Moatize/Furancungo 200Km. Furancungo/Vila Gamito 144Km.

Em 25.Mai.70 partimos para Vila de Sena e de comboio, atravessando o Rio Zambeze pela Ponte Dona Ana com 3,4Km e utilizável apenas para comboio e peões, percorremos 180Km para chegar a Moatize (Localidade importante cuja estrutura está toda vocacionada para a extracção de carvão, que abastece muitas regiões do país a partir do porto da Beira. O troço de linha férrea entre Vila de Sena e Moatize foi construído especialmente para o transporte do carvão. A linha esteve interrompida desde 1995 devido à guerra civil em Moçambique e foi reposta em funcionamento em 2010). 
Chegados a Moatize ninguém (nem nada) nos esperava para o transporte a Furancungo… foi estranho! Dirigimo-nos ao quartel da localidade. Aguardavam a nossa chegada e ao Capitão foi entregue uma mensagem para se deslocar, imediatamente, ao Comando da Região de Tete, em Tete. Curiosamente não estava disponível qualquer meio de transporte (na época a travessia do Rio Zambeze era feita por batelões, tal como noutros locais daquele rio – provavelmente haveria uma lancha militar; não sabemos). A única alternativa disponível foi uma boleia num bote de um nativo que transportava sacos de milho para a outra margem. Do comando o Cap. Tomás recebe a informação de que receberá viaturas (emprestadas) pela manhã e que pernoitarão no quartel de Moatize. Coincidentemente no grupo que saiu de Sone estavam incluídos alguns condutores mas não estava prevista a sua utilização nestas circunstâncias. O comando também referiu que o percurso poderia estar “minado” pelo que a progressão das viaturas deveria ser antecedida de “picanço” (surpresa atrás de surpresa!).
Entretanto, dentro do quartel, pudemos ver um altar esculpido num embondeiro… coisa inédita.
Quartel de Moatize
Quartel de Moatize - Capela esculpida no embondeiro


No dia seguinte, já nas viaturas...tínhamos ainda cerca de 180 Kms pela frente. Na pretensão de chegar rapidamente ao destino a picagem foi contínua até às 23h00; em espaços de tempo determinado eram substituídas as secções em picagem e, mesmo depois de escurecer, continuamos a “picar” com a ajuda dos faróis da Berliet. Às 23h00 parámos junto  a uma povoação (Cazula?) para descansar e dormir. Um machambeiro cedeu o seu celeiro que, mesmo cheirando à poeira tipica do armazenamento de cereais, serviu como camarata para alguns que utilizaram sacos como colchão; a maior parte do pessoal dormiu no exterior.
No dia seguinte reinicia-se o "picanço" sob um calor tremendo, cheios de sede e, naturalmente, de fome. Alguns kms à frente encontrámos uma "cantina" (daquelas onde o nativos entregavam cereais e recebiam em troca produtos de primeira necessidade, como alimentos e tecidos; esta também tinha confecção e costura) e, no outro lado da picada, um laranjal. O cantineiro autorizou-nos a usufruir do laranjal... que bom! Alguma comida, algum descanso. Retomamos o "picanço" e ao princípio da tarde avistamos a companhia que havia saído de Furancungo ao nosso encontro e juntos, em andamento normal, seguimos e chegamos a Furancungo (todos rotos… claro!).
Vista aérea do aquartelamento de Furancungo

Morro do Elefante
Comentários:
Acácio Tomás - Furancungo, no distrito de TETE, fica no lado oposto ao Lago Niassa, em relação a Massangulo. Por termos ido para lá, em reforço de um Batalhão, não entrámos (e não ficámos aborrecidos por isso) na célebre Operação "Nó Górdio". Um nosso pelotão (3ºGC) foi apoiar a Companhia que estava em Vila Gamito, perto daquele triângulo do mapa, onde se juntam Zâmbia, Moçambique e Tanzânia

Carlos Neto - Estávamos em Canxixe e a sede da C.Caç.2418 em Sone quando somos mobilizados para uma intervenção de cerca de 45 dias em Furancungo, a coincidir mais ou menos com a célebre operação NÓ GÓRDIO. Pelo 25 Maio de 1970 tomamos o comboio na estação de Sena com destino a Moatize e em coluna motorizada continuaria a nossa viagem para Furancungo. Instalamos arraiais num quartel muito aceitável e com muito boas instalações, para oficiais e sargentos (eram de luxo). Fomos então reforçar o B.CAV.2903, tendo um dos nossos grupos de combate como destino Vila Gamito, para reforço de uma Companhia do mesmo Batalhão.

Fernando Lopes - Na nossa ida para Furancungo e ao passar numa povoação, que julgo chamar-se CASULA, verificámos que a Companhia que lá se encontrava estava a passar um mau bocado com os abastecimentos de géneros alimentares e outros e, consequentemente, com privações de vária ordem.
Recordo-me de ter encontrado um Furriel que era de Braga (Lima) e ter partilhado com ele umas bolachas que levávamos.
O mesmo aconteceu com outros camaradas nossos.
O “quarto” dele era composto por folhas de zinco dobradas em forma de bivaque.
Era um quartel com umas instalações muito fracas para não dizer miseráveis. Assim me pareceu naquela viagem. Ao que se constou as privações eram constantes e de toda a ordem. (08.07.2015)

FURANCUNGO
Chegamos a Furancungo para reforço do Batalhão de Cavalaria 2930 do qual ficamos a depender durante aquele período. De imediato é nomeado o 3ºGC para reforço da companhia estacionada em Vila Gamito a 140Km de Furancungo e a 40Km das fronteiras da Zâmbia e Malawi.
A nossa primeira operação foi exactamente escoltar o nosso 3ºGC até Vila Gamito e assegurar o transporte de abastecimentos para aquele local por um percurso extremamente difícil e perigoso porque estava sempre “minado”, de piso muito danificado pelos diversos rebentamentos de mina, muito sinuoso e, nalguns locais, sem visibilidade.

A 1ª operação
Após a chegada e instalação do pessoal foi determinada a 1ª operação.
“Escolta a uma coluna de reabastecimento à companhia estacionada em Vila Gamito assim como ao nosso 3ºGC (Alf.F.Gomes) para reforço daquela companhia”.
Esta operação foi entregue ao 4ºGC-Boinas Pretas (Alf.Neto) que, no gabinete do comando da B.Cav.2930, em reunião com o seu comandante, 2º comandante e oficial de operações, recebe as informações operacionais essenciais.
Esta escolta exigia um grande esforço operacional na medida em que haviam vários perigos tais como emboscadas, mucurros (rios secos), mas muito especialmente as minas. Nessa reunião e ORDEM DE OPERAÇÃO foram muito salientados os perigos que poderiam ocorrer durante a viagem (emboscadas, mau estado da picada, zonas de deficiente visibilidade) as localizações, com coordenadas aproximadas, dos locais onde já tinham sido detectadas e/ou rebentadas minas.

1º Dia> É chegada a hora da partida, ordenado o alinhamento da coluna (composta por 22 viaturas) e a disposição das mesmas (intercalando as de segurança com as de mercadorias). Sabíamos que passavam meses de intervalo entre as colunas de reabastecimentos, a este nível, à Companhia de Vila Gamito.

Dada a ordem de partida e andados alguns kms inicia-se a manobra de deteção de minas – picagem do solo. A longa caminhada ainda estava no inicio e é detectada uma mina. Foi accionada, por simpatia, com uma granada de mão ofensiva. Esta mina estava muito reforçada pois, do seu rebentamento, resultou um buraco que “engoliria” um Unimog dos maiores. O picar da estrada era cansativo, saturante, stressante, desgastante. Veio a noite… fim do primeiro dia e é montada a segurança para passar a noite. Entretanto fomos acordados com o barulho de tiroteio de um ataque a um aldeamento (Chizampeta) muito próximo do nosso local do descanso.

2º Dia> Ao romper da manhã arrancamos para a segunda etapa e não tivemos mais surpresas. Em simultâneo a Companhia de Vila Gamito destacou um grupo patrulhando a picada desde o seu quartel até ao nosso encontro o que nos permitiu chegar nesse mesmo dia ao nosso destino. Após a chegada, a acomodação do nosso pessoal de segurança da coluna e do nosso 3ºGC.

3º Dia> Descanso do pessoal de segurança da coluna e descarga das viaturas.

4º Dia> No regresso o mesmo número de viaturas, mas já descarregadas, o que tornava mais fácil o andamento da coluna, embora mais perigoso em situações de contactos com o inimigo. Durante a viagem de regresso foram encontradas mais três minas, tendo sido uma levantada (Alf.Neto e Furr.Dias) e as outras duas accionadas pelo mesmo processo da primeira. Um par de chifres na estrada (talvez com a intenção de nos assustar) foi, para nós, um sinal de que o inimigo já não teria mais minas. Avançamos mais acelerados mas com prudência. Foi uma viagem muito difícil, muito perigosa, demorou quatro dias; dois dias na ida, um dia de descanso e para descarregar o material transportado. A viagem de regresso foi feita num dia. Como troféu colocamos, a mina levantada, presa na frente na Berliet para uma entrada triunfal em Furancungo. Felizmente todos chegamos sãos e salvos e com uma vontade “danada” de beber uma “bazuca” fresca.

Rebentamento da 1ª mina
Rebentamento da 2ª mina
Mina levantada
Comentários:
Acácio Tomás - À ida a 3ª mina foi levantada, veio presa na frente de uma Berliet e foi entregue no Batalhão de Furancungo. Os 144Km referidos foram feitos duas vezes (ida e volta): 3dias na ida+1 dia descanso+3dias na volta era o tempo normal para esta operação.

João Balagueiras - Eu estava lá. A 1ª noite dormimos na picada, a poucos km da povoação de CHIZAMPETA que, durante a madrugada foi atacada e nós fomos acordados ao som da metralha.Esta coluna reabastecimento foi de loucos.


Fernando Carvalho - Fui dispensado desta operação para tratar de assuntos ligados à Sec.Justiça na unidade local. No entanto lembro de ter sido referido que esta viagem (já habitual) demorava tipicamente 7 dias (3+1+3) pelo que parece que os "Boinas" teriam arriscado demais. Mas, como está referido, correu tudo bem... parabéns. (18.06.2015)

Carlos Neto – “Arriscar", não foi bem isso. Eles (inimigo) iam à nossa frente alguns metros ( 1 a 2 km) a colocar as minas enquanto nós lhe permitiamos, pela lentidão necessária para a detecção das mesmas e quando me apercebi, pelos indícios muito frescos deixados por eles, como se diz, troquei-lhe as voltas e passámos nós ao ataque, o que nos proporcionou podermos fazer a viagem com mais rapidez (19.06.2015) 

A "estrada" entre Furancungo e Vila Gamito

Depois desta primeira viagem a Vila Gamito os dois grupos, que ficaram em Furancungo, realizaram diversas operações especialmente na zona de Chizampeta e Angónia, junto à fronteira com o Malawi.

Comentários:
Acácio Tomás - Terminada a 1ª Escolta a Vila Gamito, foi realizada, poucos dias depois, uma Operação sob o comando do Capitão. Portanto éramos mais que um Pelotão. Fomos lançados próximo de Chizampeta, aldeamento que tinha sido "atacado", mas sem consequências, alguns dias antes. Apeados caminhámos por uma Picada, paralela à fronteira que se distinguia perfeitamente, por estar desmatada e capinada do nosso lado. Parecia mesmo haver uma rede de Arame a limitá-la. Prosseguindo em direcção à Angónia, uma zona fértil, ouvimos ao longe, tiros isolados, que deviam ser para avisar a nossa presença nas proximidades. Continuámos e chegámos a uma região com algumas palhotas abandonadas, onde se notavam sinais de ter sido cultivada, mas há bastante tempo. Haviam algumas plantas de cana de açúcar, que foram aproveitadas para mascar. Com poucas paragens continuámos sem contratempos e atingimos, já perto do fim da tarde, outro aldeamento abandonado, onde resolvemos pernoitar. No dia seguinte, manhã cedo, revistámos as palhotas. Nada de especial, além de artigos de cozinha, muito velhos. Havia plantação de tabaco e amendoim. Tentámos fazer charutos e fumá-los, mas não ardia. Descascámos o amendoim e tentámos torrá-lo, numa tigela de esmalte, mas sabia a feijão cru... Tivemos de nos governar com o que levámos da ração de combate. Na continuação da Operação encontrámos um casal de velhotes, com uma trouxa. Revistada foi encontrado um rato morto, com sangue ainda fresco, que eles levavam para comer. Era quase noite quando chegámos a Furancungo, depois de grande caminhada e com pouco descanso. Julgo que foi das mais longas operações apeadas que fiz... e sem nada de especial a assinalar. (27.07.2015) 

Acácio Tomás - Curiosidade: Actuação para TV Alemã:
Não sei a razão que levou à nossa escolha e já não me lembro quantos e quais foram os "artistas" que em Furancungo, actuaram para uma filmagem de uma TV Alemã. Havia pelo menos uma Secção, transportada num UNIMOG que era "surpreendida" pelo rebentamento de uma Mina e teriam de reagir, saltando para o solo.
 Não sei se a cena ficou bem filmada à primeira vez ou se houve repetição. A memória não dá para mais... (27.07.2015)

Cinco semanas depois (da 1ª viagem a Vila Gamito) uma nova coluna, por nós escoltada, voltou a Vila Gamito para novos abastecimentos e recolha do nosso 3º Grupo de Combate. 
Desta vez não foram detectadas minas.


Comentários: 
Francisco Lopes - Eu fiz a viagem até Vila Gamito quando fomos recolher o pelotão de regresso definitivo. Não foi nada fácil o receio de que algo desagradável ocorresse, mas felizmente apenas um ataque ao aldeamento
  
Carlos Neto - As operações militares durante a nossa estada em Furancungo eram de ordem mais ou menos de patrulhamento da zona, pois nunca houve contactos com o inimigo. As duas viagens a Vila Gamito, a 1ª que aqui relato, bem como a segunda para recolher o terceiro Pelotão da C. Caç.2418 foram viagens de muito risco. Felizmente tudo correu BEM.

Por fim, em toda a nossa actividade operacional em Furancungo, apenas as colunas a Vila Gamito manifestaram situações de risco.
MISSÃO CUMPRIDA!

Destacamento Vila Gamito
Este aquartelamento estava completamente a descoberto na paisagem e simultaneamente com bastante visibilidade periférica dada a pouco altura da vegetação. Tinha uma enorme parada com algumas peças de artilharia preparadas para se defender até aos morros que a rodeavam a uma significativa distância.
Instalações muito razoáveis; água boa e abundante.
As fronteiras comuns entre Moçambique, Malawi e Zâmbia, estavam a 40 Kms. de Vila Gamito e esta a 140 Kms. de Furancungo ligada por estradas completamente arruinadas pelas diversas minas. As emboscadas não eram frequentes.
Aquartelamento Vila Gamito
Porta de armas
Comentários:
Carlos Nabeiro - Conheci muito bem a zona de Vila Gamito (e as suas "dores de cabeça"). Andamos, entre a Cantina do Freitas e Furancungo de Maio de 68 a Fevereiro de 70 a apanhar com Fornilhos, Flagelações e uma ou outra pequena emboscada. Nem o posto da Guarda Fiscal entre Vila Gamito e o Freitas escapou. A minha companhia era a 2357 do B.Caç.2842. O Estacionamento da 57, era precisamente em V.M.. Cumprimentos. (14.08.2015)

Furancungo 13.Jul.70
Terminamos a nossa inesperada e penosa missão neste local. Vamos regressar a Sone. Em coluna, de Furancungo a Moatize, de novo percorremos aqueles 200km. Em Moatize juntaram-se os furriéis Lopes e Carvalho que estiveram, por alguns dias, em serviço na cidade de Tete. Na estação somos informados que o comboio para a Vila de Sena estava previsto para o dia 15… dois dias de "seca"?
O Alf.Neto conversando com o chefe da estação argumenta da necessidade imperiosa do nosso regresso e pede-lhe colaboração. Coincidentemente é encontrada uma solução: O chefe tinha umas carruagens para reparação nas oficinas da Beira e, se aceitássemos viajar nas ditas, sairíamos no mesmo dia, com paragem assegurada na Vila de Sena. Foi aceite! “Canja”! O pessoal embarcou e 180Km depois chegávamos à Vila de Sena. À nossa espera os nossos companheiros e as viaturas com destino ao merecido descanso em Sone e preparação do regresso a nossa casa e à nossa família.

Sone 15.Jul70 
Chegamos a Sone para retomar os nossos ritmos e compromissos. 
O barco, que nos levaria de regresso à metrópole, estava previsto para 22 de Agosto de 1970 pelo que, após a chegada a Sone, os 3º e 4º GC voltaram a ocupar as suas posições em Tambara e Canxixe; os restantes voltaram às suas tarefas, mas todos aguardavam ansiosamente o REGRESSO.





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