030.CATÁSTROFE no Zambeze

Catástrofe no Zambeze
21 de Junho de 1969 (Sábado) 
100 Militares mortos

No dia da saída da nossa Companhia de Massangulo e chegada a Catur, pelas 17h00, ocorria o catastrófico naufrágio do batelão São Martinho, no rio Zambeze, com 150 militares e 30 viaturas Unimog. Neste acontecimento esteve envolvido o nosso camarada condutor Alcino Moura.
Perderam a vida 100 militares; muitos dos que se conseguiram salvar fizeram-no por conta própria, com a sua luta e a sua sorte.
Este acontecimento, escassamente divulgado na época – como convinha – e distante do contexto das movimentações da nossa Companhia, não pôde deixar de ser enquadrado na nossa cronologia e história, dada a sua importância, e pelo envolvimento do nosso camarada Alcino Moura, que havia sido nomeado para levantamento uma viatura em Lourenço Marques.

Para além do silêncio que continuamos a sentir sobre a Guerra em África, não é menos penoso o esquecimento deste monstruoso acidente.
Estávamos em Catur aguardando saída para Maniamba, quando tomámos conhecimento desta catástrofe. Os pormenores eram escassos, mas os mortos… muitos!
Uma boa parte da nossa Companhia nem sabia que o nosso camarada Alcino Moura estava incluído entre as vítimas daquele acidente. Correntemente íamos sabendo das mortes nas outras companhias, das suas acções de guerra, mas esta quantidade, sem tiros, sem granadas, sem minas, sem emboscadas, faziam desta notícia algo muito arrepiante.
Baltazar Rebelo de Sousa, então Governador-Geral de Moçambique, esteve presente no dia seguinte e referiu no local (como lhe competia): “Os vossos camaradas não morreram lutando, morreram igualmente pela pátria”. Mas as notícias que nos chegavam apontavam que morreram ingloriamente como resultado da negligência, da incompetência e, provavelmente, da ganância do proprietário do batelão e de outros responsáveis que “assobiaram para o lado” nas obrigações que antecederam a saída do batelão S. Martinho, de Chupanga para Mopeia.
A coluna, composta por 150 militares: um Alferes, seis Furriéis, 29 Cabos e 114 Soldados, chegou a 15 de Jun. de 1969 a Chupanga e esperou disponibilidade para a travessia. O batelão tinha sofrido alterações para aumento da sua capacidade que ainda não estavam verificadas nem tão pouco aprovadas (pormenores desconhecidos do comandante daquela coluna).
Antes do embarque, o comandante da coluna, Alferes Óscar Rosário, questionou a capacidade daquele batelão para transportar tal carga; à questão o proprietário do batelão respondeu afirmativamente, assegurando plenas condições para transportar toda a coluna de uma só vez. 
Este batelão recebeu 150 militares, mais uma dezena de civis, e 30 viaturas Unimog, recolhidas em Lourenço Marques, que se destinavam ao distrito de Niassa, oferecidas pelo Governo da África do Sul ao exército português. 
A saída do batelão aconteceu às 16h30. Algum tempo depois, o motor do lado direito parou duas vezes. Do mesmo lado havia uma forte ondulação e começou a meter água, porque as barcaças não estavam tapadas/estancadas, o que fez adornar a embarcação para a direita. Eram 17h00 e, em pouco tempo, talvez um minuto, seguiu-se o trágico naufrágio no Rio Zambeze. Num ápice instalou-se o pânico e rapidamente muitos militares, ao mesmo tempo que se libertavam da roupa e outros adereços, lançaram-se à água utilizando como bóia “qualquer coisa” (malas, sacos, tábuas, etc.) mas a maior parte destes militares foi tragada pelas águas, juntamente com as viaturas.
As alterações inacabadas e não inspeccionadas do batelão, o excesso de peso, a má distribuição da carga, a correnteza do Zambeze e muitos militares acomodados dentro das viaturas contribuíram para esta catástrofe, agravada pelo surgimento da noite, que se tornou num elemento negativo, adicional e impeditivo da visibilidade quer dos náufragos quer dos eventuais socorristas. Os gritos de pânico alertaram as populações, especialmente pescadores, que desde logo se movimentaram na recolha dos náufragos, mas a noite não ajudava. Os irmãos Campira (Vasco, Zeca, Manuel e Armando), pescadores que viviam numa ilha do Zambeze, salvaram dezenas de náufragos. Foram inexcedíveis na recolha de náufragos, seu acolhimento e posterior apoio usando as suas próprias palhotas como alimento das fogueiras para os secar.
Nos dias seguintes muitos recursos militares terrestres, marítimos e aéreos e muitos elementos da população local e europeus, com os seus próprios barcos, foram envolvidos durante umas três semanas, na recuperação de cadáveres e viaturas. Um professor motivou os seus alunos, de dez a treze anos, a participar na vigilância ao longo da margem esquerda do Zambeze. Muitos dos corpos foram encontrados a longa distância do naufrágio, o que aconteceu até aos 70 Km a jusante do acidente. Barcos equipados com guindastes recuperavam as viaturas, normalmente com militares mortos no seu interior.
Não foram recuperados todos os corpos, faltaram treze. Algumas companhias reclamaram os corpos de militares desaparecidos neste naufrágio e não obtiveram resposta, pelo que se poderá concluir terem sido devorados por predadores que frequentam aquele rio e as suas margens. 
Depois das identificações dos que eram portadores de documentos e registados os pormenores dos restantes, todos os corpos foram depositados no cemitério de Mopeia. Também neste acto foi notável a colaboração dos nativos na construção de caixões e abertura dos covais.
Morreram um Alferes, um Furriel, dezoito Cabos e oitenta Soldados.
Foram recuperadas 26 das 30 viaturas embarcadas. (a)


Nota 1O “Relatório do Exército, sobre Acidente na Travessia do Rio Zambeze” do Estado Maior do Exército datado de 28 de Junho de 1969 relata com mais pormenor os acontecimentos e as anomalias registadas. Para consulta deste documento sugerimos:

Nota 2: Um dos mortos deste naufrágio foi o Soldado-Maqueiro António Moura, da CCS do B.Caç.1936, que esteve destacado em Massangulo e foi connosco em diversas operações. Camarada muito divertido que nos brindou com diversos momentos de hipnotismo.


Alguns dos sobreviventes do naufrágio.
À direita, com a viola, o Alcino Moura.

O testemunho do Alcino Moura demonstra, na primeira pessoa, a realidade vivida naquele acontecimento... que só alguns puderam contar.



Testemunho de Alcino Gomes de Moura
Soldado Condutor

(Vítima do acidente ocorrido em 21 Junho 1969 no Rio Zambeze na travessia entre Chupanga e Mopeia)

Não me lembro de quem foi nomeado para o levantamento de uma Unimog 411, em Lourenço Marques, que se destinava à nossa companhia em Massangulo, mas quando soube ofereci-me para essa missão porque, naquela altura, eu necessitava sair daquela zona e respirar novos ares.
Então fui até Lourenço Marques.
Recebemos as viaturas em Lourenço Marques e, em coluna, avançámos em direcção à Beira e depois tomámos uma estrada ao longo do Parque da Gorongosa, passando por Inhaminga, até Chupanga, onde parámos. Tínhamos percorrido 1 400 Km e ainda faltavam 1 000 Km até Massangulo. A travessia do Rio Zambeze, entre Chupanga e Mopeia, era feita por batelões. Para embarcar esperámos três dias porque o batelão que nos transportaria estava em reparação. Havia um outro batelão que, por ser mais pequeno, teria que fazer o transporte por duas vezes e talvez por isso tenha sido decidido esperar pela reparação do batelão maior. No dia 21 de Junho de 1969, embarcaram as 26 viaturas e cerca de 150 militares. O batelão era constituído por três barcaças que eram “juntas e tampadas” por um enorme estrado e com uma pequena cabine que deveria ser a do comando. Cada barcaça lateral tinha um potente motor: reparei que as frentes das barcaças não eram tapadas e que o estrado do batelão estava muito perto da superfície da água devido ao peso das viaturas e militares. Não faço ideia da distância entre as duas margens nem do tempo previsto para a travessia, mas lembro-me que o andamento era muito lento. Lembro-me que começou a chover e muitos militares entraram para as viaturas, abrigando-se. Talvez uma meia hora depois o motor esquerdo deixou de funcionar e o batelão começou a rodar levemente, o que criou instabilidade no controlo o que facilitou a entrada de água não só no convés como também nas frentes das barcaças, que estavam a descoberto. Esta situação criou uma primeira inclinação do batelão e o início do deslizamento de algumas viaturas; a partir daqui, não conseguiram controlar mais o batelão que se inclinava ainda mais devido ao deslizamento de todas as viaturas. A ondulação inundou o convés e fomos projectados para fora do batelão. Quando caí na água lembro-me de ter caído por cima de outros militares já aflitos e em pânico: era uma situação confusa de homens, gritos, pedidos de socorro, sacos, malas, caixas… eu sei lá. De repente, senti que um militar se agarrava ao meu dólman para não se afundar. Eu já o havia desapertado, mas perante aquele risco soltei os braços e o dólman saiu: no momento pensei que, mantendo aquele rapaz agarrado a mim, eu não me safaria. Mantive-me à tona, nadando como podia e sabia (que era pouco) ao mesmo tempo que era levado pela corrente do rio. Queria libertar-me rapidamente daquela confusão e tentar safar-me por conta própria. Fruto do naufrágio boiavam muitos materiais como sacos, malas, caixas, etc. e muitos homens. Um camarada, também na água, reparou em mim e na minha aflição e atirou-me um saco militar que me serviu de bóia e mais uma vez me deixei levar pela corrente enquanto os meus pensamentos eram tomados pelo pânico. Entretanto o saco encharcou e já não era uma bóia, era um peso, então larguei-o e tentei nadar, aproximando-me da margem, sem o conseguir. Já me sentia a fraquejar, estava a ficar sem forças, já pensava que o meu fim estava perto… e vi a margem tão perto… nesse momento fui ao fundo (creio que pela segunda vez) mas algo me fez reagir e voltei à tona. Entre as coisas que boiavam passou, na corrente muito rápida, uma mala pequena (não sei se de cartão ou couro) que parecia vir ter comigo… agarrei-a e coloquei-a debaixo do braço direito e continuei boiando à espera de sentir o leito do rio… só queria sentir o chão. Mas a mala rapidamente encheu e de novo fui ao fundo: “é agora que vou”, pensei eu. Entretanto ia vendo camaradas, ao sabor da corrente, esbracejando e gritando… pouco tempo depois desapareciam da minha vista e já não os ouvia… seria eu o próximo? De repente naquela amálgama toda vejo, ao meu encontro, algo parecido com o braço (escala) de uma viola, mas não sabia se a conseguiria apanhar… as forças eram cada vez menos. Consegui agarrar a viola, que tinha uma capa (talvez impermeável), e meti a caixa da viola entre as pernas e a escala bem juntinha ao meu peito com toda a força que eu tinha… estava de novo a boiar mas completamente esgotado… já estava na água há cerca de meia hora. À frente, o rio fazia uma curva à direita mas a corrente levou-me em frente e para perto da margem esquerda. Afundei o corpo na esperança de tocar no leito… naquele momento nada senti. Um pouco mais à frente afundei de novo e toquei no leito do rio. Aos poucos e já sem forças fui-me aproximando da margem até sentir os pés no chão… a areia estava perto. Muito lentamente, ainda com a viola entre as pernas, e depois de gatas, fui saindo do rio mas não tinha forças para me levantar. Completamente esgotado deitei-me na margem. Pouco depois ouvi vozes, pareciam chamar por mim ou dirigidas a mim mas não conseguia distinguir donde vinham. Eu tentava falar ou até gritar mas nenhum som me saía ou o que saía ninguém podia ouvir… não conseguia falar. De novo as vozes “vem para aqui!” e eu dizia “não tenho forças!”. Para chegar ao meu salvador tinha que atravessar uma poça de água mas o meu pânico impedia-me de avançar pois tinha medo de entrar de novo na água. A voz era de um Furriel também naufragado mas que tinha encontrado abrigo e segurança. Levou-me para junto de uma fogueira, feita por uns nativos, que usaram a madeira das suas próprias palhotas. Junto à fogueira já estavam outros militares cansados e gelados. Deveriam ser umas 6h da tarde e já era muito escuro.
Às 3h00 da manhã fomos recolhidos e levados para um destacamento militar em Mopeia. O comandante do destacamento mandou levantar todo o pessoal das camas para as ceder a nós, descansarmos e dormir. Lavei os pés, deitei-me, mas não conseguia adormecer: incrivelmente deu-me para ler uma revista (não sei porquê) mas depois adormeci.
No dia seguinte começaram a chegar os corpos dos mortos… eram muitos, parecia não ter fim. Creio que não apareceram todos.
Não houve urnas suficientes e, num armazém, em frente ao destacamento, fizeram uma série de caixotes que serviram de urnas que seguiram para o cemitério local.
Entretanto apareceu o dono da viola, o Furriel João Meireles, a quem tive que entregar aquele instrumento salvador.

Este é o meu testemunho, mas eu sinto que as palavras não são bastantes para transmitir aqueles 30/40 minutos da minha vida.

Alcino Moura (25 Junho 2015)


Comentários

O testemunho, do nosso companheiro Moura, enriquece muitos dos textos já publicados sobre este tema, pelas informações sobre o batelão e do desenrolar dos acontecimentos que originaram aqueles momentos tão trágicos que, no caso dele, são tão pessoais e únicos. Obrigado Moura. O teu testemunho também é a nossa história. 
Um grande abraço.
Fernando Carvalho (ex furriel) (29Jun15)

Li e reli este impressionante relato do naufrágio de Mopeia, feito pelo Soldado Condutor Moura da C.Caç.2418, um dos sobreviventes. Nunca lhe tinha querido fazer muitas perguntas, para não lhe reavivar a memória e fazer reviver aqueles momentos de tragédia e enorme aflição! Julguei que o apoio da viola o tivesse ajudado mais e não tivesse sido tão difícil sobreviver. Admiro a coragem e felicito-o pela sua persistência na luta pela Vida. 
Um abraço.
Acácio Tomás (ex Capitão) (29Jun15)

Após leitura atenta do relato feito pelo nosso amigo Alcino Moura que vem sendo referido e por pouco tempo que nos detenhamos sobre toda esta tragédia, ficamos angustiados com tanto sofrimento e dor por que passaram os nossos amigos.
Lembro-me também dum outro Moura (maqueiro) que veio a sucumbir em tal tragédia. Este esteve em Massangulo por cedência do B.Caç.1936 (Catur).Era, além de bom maqueiro, um bom amigo e pessoa bem-disposta e divertida quando fazia uso dos seus dotes de hipnotismo. A magia desta vez, infelizmente, trocou-lhe as voltas. Que a terra lhe seja leve!
Ao Alcino Moura, condutor da nossa C. Caç.2418, envio um abraço e desejos duma vida longa.
Fernando Lopes – (ex Furriel Enfermeiro) (11.07.2015)

Neste desastre morreu também um nosso camarada do B.Caç.1936, o maqueiro Moura (curiosamente também chamado Moura). Todos o conhecíamos bem e estimávamos. Era um bom hipnotizador, que varias vezes actuou para o pessoal do batalhão, divertindo-nos imenso. E este, infelizmente, não se salvou. Paz à sua alma.
Pedro Tavares Madeira (BC1936) Jul2015


Dois condutores da C.Cav.2415, aquartelada em Lione, estão na lista dos falecidos.
Fernando Carvalho (ex furriel) Jul2015



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