02.Testemunho de Artur Beirão
Major e Oficial de Operações
do B.Caç.1936 em Catur
Este aerograma foi
escrito quando a C.Caç.2418 estava em Intervenção, desde finais de Junho de
1969, em Maniamba, distrito do Niassa e já não dependia,
operacionalmente, do B.Caç.1936, mas sim do B.Caç.2853-Macaloge.
Do texto deduz-se que
o Sr. Major Beirão o escreveu em Vila Cabral, depois de ter estado no Sector, a
tratar de outros assuntos e a comentar o azar da C.Caç.2418.
Foi escrito quinze
dias depois da nossa Companhia ter sofrido um incidente terrível com uma Berliet
que accionou uma Mina anti-carro, muito reforçada, que provocou a morte de 3
Militares e 17 Feridos, dos quais, três muito graves, foram evacuados para a
Metrópole.
As palavras do Sr.
Major Beirão mostram, para além da estima e do reconhecimento do nosso
trabalho, o Homem e o Militar que ele foi.
Para
facilitar o acesso ao conteúdo do Aerograma transcrevemos o mesmo:
Para:
Capitão Acácio Gomes
Tomás SPM 4624
Remetente: A.Beirão SPM
9644
SPM 9644,
29 Ago 69
Meu caro Tomás:
Desculpe não tratá-lo por Doutor. Para mim é o Tomás,
um amigo que um dia encontrei em África a cheirar a “checa” e que em 27 Fev
deixou de o ser graças a “S.Jorge Z “; para mim é o Tomás que eu muito
considero e estimo.
Há bastante tempo que pretendo escrever-lhe. Bem sei
que as minhas palavras não remediarão nada. Não recuperarão um morto; não darão
alívio a um ferido; não evitarão o sofrimento dos vivos. Bem sei tudo isso mas
quero escrever-lhe. Sinto obrigação de escrever-lhe. Todos esses rapazes da
2418 foram do 1936 e eu, sendo 1936, tenho na alma um cantinho para cada um de
vós. Senti o vosso azar. Não chorei com os olhos, os vossos mortos; Mas tenha a
certeza que os chorei com a alma, tanto quanto devemos chorá-los (Que para além
de certo limite não vale a pena chorá-los, mas ter-lhes inveja por quanto foram
e são).
Além deste extravasar de afeto queria dizer-lhe que
tendo vindo ao SECTOR, estive a falar de vós, da 2418. E quero transmitir- lhe, para o animar mais e
aos seus rapazes, o excelente CARTEL que a Companhia aqui tem. De todas as que
estão em funções semelhantes à 2418, a vossa é de LONGE A MELHOR … São ELES que
o dizem, repare... E eu o ouvi com muito agrado, tanto que me leva a
comunicar-lho. Claro que eu ainda interferi na conversa
dizendo: Pudera! Pertenceram ao 1936, como é que queriam que não fossem bons!…
Aqui lhe ficam, pois, as
minhas felicitações, traduzidas num grande abraço para si e para os seus
rapazes. Também já sei que dentro em pouco (no final
desta intervenção) ireis recuperar, parece-me que um mês ou quase, lá no Catur.
Lá vos espero, procurando ajudar-vos a recuperar as forças físicas e
espirituais (que ambas são extraordinariamente precisas), na conjuntura que
vivemos. E por hoje é tudo. Desejo que receba boas notícias de toda a Família.
Um abraço para os seus alferes, saudações para os seus
Sargentos e praças. Para si, meu caro Tomás, um abraço do “ velho” amigo
(talvez amigo velho…),
Artur Beirão
03.Testemunho de Fenando da Silva Sousa LOPES
Furriel Enfermeiro
UMA CAMINHADA DE 4
ANOS...
Chamado a prestar
serviço militar em 1966, apresentei-me na Escola Prática de Infantaria (Mafra),
a 12 de Setembro, para frequentar o Curso de Sargentos Milicianos. Foi o início
da minha vida militar com algum esforço, sacrifício e muitas novidades no seu
desenrolar.
Recordo-me que o
Aspirante que nos deu formação tinha o nome de Costeira.
O
Comandante da Escola era o Coronel Manuel Ribeiro de Faria. Recordo-me ainda do
seu nome pois tantas foram as vezes que o seu nome fora mencionado nas
formaturas de fim de dia e outras.
Daqui
fui transferido, em 3 de Janeiro de 1967, para o Regimento de Serviço de Saúde,
à Estrela (Lisboa), a fim de frequentar o Curso de Enfermagem que veio a
terminar a 18 de Março do mesmo ano, culminando com a minha promoção a 1º Cabo
Miliciano a 3 de Abril de 1967.
Foi
uma experiência interessante, para mim totalmente nova, pois nunca tinha
sonhado vir um dia a ser enfermeiro, eu que, civilmente, vinha duma área
totalmente diferente (Tribunais).
Recordo-me
que para efeitos de alojamento e alimentação estávamos aquartelados no Batalhão
de Sapadores dos Caminhos de Ferro (BSCF), em Campo de Ourique e, todos os dias,
em formatura, deslocávamo-nos para uma dependência da Basílica da Estrela.
Terminada
esta fase fui transferido para o Hospital Militar do Porto a fim de fazer o meu
estágio de enfermeiro, estágio esse que foi levado a efeito nos Serviços do
Bloco Operatório. Reconheço hoje que foi o melhor que me podia ter acontecido,
pois foram muitos os conhecimentos adquiridos, os quais vim a pôr em prática
mais tarde, já em Moçambique, ao enfrentar situações limite. Para além dos
conhecimentos referidos quero salientar o sangue frio “conquistado”, perante
situações difíceis e adversas naquele Bloco Operatório.
Na
continuação desta minha Caminhada, em 13 de Março de 1968 já no Regimento de
Infantaria nº 8 de Braga, unidade para onde fora transferido, fui promovido ao
posto de Furriel Miliciano.
As
instalações da Enfermaria do R.I.8 onde estive a prestar serviço (Rua de
Camões) hoje pertencem à Universidade Católica (Faculdade de Ciências Sociais).
Passados
que foram alguns meses e após uma curta passagem pelo Hospital Militar do
Porto, como doente, apresentei-me em Chaves para integrar na Companhia com os
demais camaradas, já na parte final, porquanto já decorria o I.A.O. (Instrução
de Aperfeiçoamento Operacional).
No
decurso do I.A.O. tenho presente que numa “saída” do acampamento até ao B.Caç.10
- para tomar um banho refrescante – um Austin Mini, conduzido por uma senhora,
ao fazer uma curva à entrada de Chaves, ela que vinha em sentido contrário,
cortando a curva, raspou na nossa viatura provocando alguns danos no seu veículo.
De pronto assumiu a culpa, assinando uma declaração que fiz entregar ao Oficial
de Dia do B.Caç.10. Não passou de um pequeno susto. Tudo Ok.
Chegado
o dia 22 de Julho de 1968 partimos nós de comboio para Lisboa. Foi uma viagem
que nunca mais acabava, longa e apertada. Seguiam duas Companhias: a nossa e a
C.Caç.2419.
No
dia 23 de Julho esperava-nos o navio Vera Cruz no Cais da Rocha de Conde
D’Óbidos.
No
trajecto de Santa Apolónia para o Cais a viatura que seguia à nossa frente, por
razões que ignoro, foi-se abaixo. Acto contínuo o Furriel Filipe, que seguia na
minha viatura, pôs-se logo em acção e disse ao nosso condutor para encostar a
viatura à traseira da que ia à nossa frente para a empurrar. Assim fez. Num
abrir e fechar de olhos a viatura pegou e pôs-se em andamento. Aqui ficou logo
demonstrada a competência do Filipe, mesmo nas coisas que parecem que não têm
dificuldade maior. Mas foi preciso resolvê-lo e foi bem resolvido e a contento
de todos.
Feito
o desfile de despedida, entramos no Vera Cruz.
Jamais
esquecerei um Capitão que se encontrava a meu lado a acenar e a dizer adeus a
alguém, com as lágrimas nos olhos, que procurando pelo meio da multidão
verifiquei que era para um sujeito, mais ou menos da nossa idade com um bebé ao
colo, que o levantava o mais alto possível para que pudesse ser visto.
Partiu-me o coração ver aquela imagem. Suponho que seria um filho.
Eu
não quis ninguém em Lisboa para despedidas. Era muito doloroso aquele cenário.
Passado
algum tempo o Vera Cruz iniciou a viagem sulcando as águas do Atlântico. Já
longe e bem longe, e com alguns dias de viagem, deparei-me pela primeira vez
com peixes voadores que, conforme o barco rasgava as águas, saltavam à sua
frente formando um “corpo de segurança” aos nossos soldados. Grande guarda de
honra!
Passamos
por Luanda, uma paragem por pouco tempo, e retomámos a viagem rumo a Lourenço
Marques. No Atlântico não tivemos problemas de maior, tirando aqueles enjoos
inevitáveis. Dobrado o Cabo e entrando no Oceano Índico, a coisa mudou um pouco
de figura. O mar era mais agitado.
Finalmente,
a 8 de Agosto de 1968 chegamos a Lourenço Marques. Desembarcamos e fizemos um
desfile todo pomposo e com toda a jactância pelas Avenidas da cidade.
Gostei
da cidade pois era bonita e de ruas muito alinhadas.
A
viagem continuou até que, a 13 de Agosto, chegamos a Nacala, porto de mar
espectacular com uma baía enorme. Saímos do navio, distribuíram-nos armas (G3)
e entramos para o comboio, que diria, das “Tormentas” até Catur. Tormentas
porque não cabia mais uma mala que fosse, tantos eram os militares que ali iam
“amontoados”. Coisa só vista e vivida!
Esta
viagem está cabalmente descrita pelo nosso amigo Fernando Carvalho sob a
epígrafe “Nacala a Massangulo”. Descrição minuciosa e perfeita.
A
certa altura da viagem, já noite, alguns soldados que iam junto às janelas,
começaram a disparar até que, de repente, ouviu-se uma voz a mandar parar com o
fogo. O que é que se passou? Só confusão para quem está a tomar contacto com a
realidade pela primeira vez. Julgaram ver “turras” nas encostas dos montes que
ladeavam a linha do comboio.
Éramos
muito “checas”, mesmo!
A
viagem prosseguiu e chegámos ao Catur, a 15 de Agosto. Saímos do comboio e
retomamos a viagem até Massangulo, em viaturas, nosso destino final. Chegamos
já de noite.
Sobre
a nossa permanência em Massangulo já expendi algumas considerações sobre o que
foi a nossa vivência e dificuldades.
O
ponto principal que eu aqui quero realçar, e dar ênfase, radica na amizade e
entreajuda de todos nas grandes e pequenas dificuldades. Foi o que nos ficou ao
cabo de tantos anos porque, os dois vividos em Moçambique, foram-no com muita
intensidade e solidariedade.
Permanecemos
aqui em Massangulo até 21 de Junho de 1969 e sob a alçada do Batalhão de
Caçadores 1936 do Catur, a que estávamos afectos.
Faço
aqui um pequeno parêntese para contar que a rádio que mais se ouvia naquela
zona era a Rádio Pax da Beira e, ao jeito do que ocorria na Rádio Renascença,
também havia os discos pedidos. A certa altura ouvi a dedicação de um disco a
um ouvinte da seguinte forma:
“E
agora, para LUÍS MISERÁVEL POUCA SORTE, o disco do Roberto Carlos, “Eu te amo,
Eu te amo, Eu te amo””.
Sempre
teve alguma sorte, pois dedicaram-lhe o disco que pretendia!
De
Massangulo demos um salto até Maniamba onde nos mantivemos até 5 de Janeiro de
1970 e onde estivemos sob as ordens do Batalhão de Caçadores 2853, em Macaloge.
O
maior desastre da minha Companhia ocorreu neste período de tempo, mais
precisamente no dia 14 de Agosto de 1969 com o rebentamento duma mina tendo
como resultado o falecimento de 3 camaradas (António Leite Costa, António
Manuel Ferreira e Lino Ribeiro da Silva) e 10 feridos (Ribeiro, Riquito, Reis,
Brás, Patilhas, Barbosa, Lima, Cunha, Teixeira, Matos) e ainda 4 nativos também
feridos.
A
5 de Janeiro de 1970 deixamos Maniamba e regressamos ao Catur onde permanecemos
cerca de 50 dias, aguardando ordens para seguir para Sone, o que aconteceu a 26
de Fevereiro de 1970. O Batalhão que agora aqui se encontrava era o B.Caç.2895.
Após
alguns dias de viagem chegamos a Sone a 6 de Março de 1970, depois de ter
passado por Nacala, Porto Amélia, Beira e Sena.
Foi
um tempo agradável aquele que passamos em Sone, terra banhada pelo rio Zambeze.
Este
sossego e bem-estar foi abruptamente interrompido a 25 de Maio de 1970, pois
tivemos que ir para Furancungo em mais uma intervenção e que se prolongou até
13 de Julho de 1970.
A
15 de Julho de 1970 já estávamos novamente todos em Sone e aqui permanecemos
até 21 de Agosto de 1970, altura em que iniciamos a nossa tão desejada viagem
de regresso à Metrópole, passando pela cidade da Beira onde embarcamos no navio
Niassa. Seguiram-se as cidades de Lourenço Marques, Moçâmedes, Luanda, Funchal
e, finalmente, Lisboa a 16 de Setembro de 1970.
Nesse
mesmo dia e após as cerimónias militares relativas à chegada, partimos de
comboio para Chaves, tendo lá chegado pelas 3h da manhã do dia 17 de Setembro
de 1970, onde ninguém do B.Caç.10 nos esperava. Merecíamos um pouco mais de respeito
e atenção. Aliás, ilustrando o que acaba de ser dito e, volvidos estes anos
todos ainda me interrogo sobre os motivos que levaram o B.Caç.10 (nossa Unidade
Mobilizadora) a não fazer atempadamente a competente comunicação à C.Caç.2418
da minha promoção a 2º Sargento Miliciano já que a mesma tinha sido publicada,
em devido tempo, na Ordem do Exército nº 19, 3ª Série, de 10/07/70 – pág. 807 –
onde se lê:
“Julho:
Promovido a 2º Sargento Miliciano S.S., em 10, contando a antiguidade desde
31/03/70, com direito aos respectivos vencimentos desde aquela data”.
Não
é que essa circunstância me tivesse afectado em demasia, mas que teria algum
sabor muito pessoal, lá isso era verdade! Por via dessa omissão, chegado à
Metrópole, requeri e recebi todos os retroactivos que me eram devidos. Disso
não fui prejudicado. Esta circunstância denota um certo laxismo e inércia por
parte de quem tinha a obrigação de fazer a competente comunicação, em devido
tempo!
Aqui
terminou a minha Caminhada, onde só encontrei amigos que ainda hoje muito
prezo. Seguiu-se a passagem à disponibilidade.
Um
Abraço para todos do amigo
Fernando Lopes
Julho 2016
Comentários
Caro
amigo Fernando Lopes: Felicito-o pela narrativa e também pela sua Promoção...
As gentes do B.Caç.10 deviam andar muito ocupadas, por cá..., durante a nossa
estadia por lá... Por isso devem ter ficado muito admirados quando, em 17 de
Setembro de 1970, pelas 03 horas lhes aparecemos "inesperadamente" na
Estação da CP de Chaves, chegados num TGV! E, por fim, só nós dois (julguei que
tinha sido só eu...) ficámos "presos" até ao dia seguinte. Houve quem
não compreendesse a minha recusa em ir ao Convívio lá realizado...
Acácio Gomes
Tomás (Ex Capitão)
Esta
descrição da nossa passagem, por terras africanas, foi das mais pormenorizadas
que encontrei. Gostei! Um abraço ao meu grande amigo LOPES.
Balagueiras (ex
Furriel)
Olá
companheiro. O meu abraço de muita amizade. Tu foste (e ainda és) um elemento
muito importante da nossa história não só pelo teu trabalho concreto mas, e
principalmente, pela tua serenidade, disponibilidade, afabilidade que muito
contribuíram para a estabilidade psicológica de todos nós. Tenho de ti, e
mantenho, a imagem de um Homem muito nobre. Adorei e registei o teu
"relatório militar"... espectacular!
Carvalho (ex Furriel)
A SAÚDE NÃO TEM COR
Em
aditamento e na sequência do por mim já exarado apraz-me consignar o apoio e
assistência que foram prestados a quem se abeirava do nosso Posto de Socorros a
pedir ajuda, obviamente dentro dos escassos recursos de que dispunha a
C.Caç.2418, que eram pouquíssimos.
Estivemos
em Massangulo de 15.08.68 a 21.07.69.
A
nossa Companhia tinha uma verba mensal destinada à saúde, de 1.500$00 que não
podia ultrapassar. Ora, havia meses em que sobravam alguns medicamentos e, por
via disso, era-nos possível dar algum apoio às populações. Assim, à porta do
Posto de Socorros vinham chegando, diria diariamente, pessoas a solicitar ajuda
para ultrapassar problemas de saúde diversos, que as vinham apoquentando.
Fazíamos o nosso melhor, e penso que mais ou menos bem, pois todos os dias o
Posto de Socorros tinha um grupo enorme para ser atendido. Se assim não fosse,
não compareceriam com aquela assiduidade!
Mais
abaixo do nosso quartel (3Km, talvez) havia uma Missão Católica de padres
italianos (Congregação Consolata) que tinha ao seu serviço uma Irmã Enfermeira
que, com a sua dedicação, abnegação, espírito de sacrifício e, acima de tudo,
com muita caridade, ia fazendo autênticos milagres à população de Massangulo
face aos escassos meios que me dizia possuir. De tal sorte que, por indicação
do Alferes médico Joaquim Ribeiro, começamos a dispensar, o pouco que tínhamos,
alguns medicamentos e outro material que não nos fazia falta. Cheguei,
juntamente com a minha equipa de enfermeiros, a pegar em alguns rolos de gaze,
fazendo compressas que, depois de devidamente acondicionadas, eram entregues na
missão. A Irmã não se coibia de mostrar o seu agradecimento pois tudo dava
jeito, porque o que tinham em stock era o “NADA”. Só gente como ela, com aquele
espírito altruísta, é que conseguiria ultrapassar tantas dificuldades e
vicissitudes.
É
de todo em todo incontornável salientar a alegria que aquela Irmã Enfermeira
colocava nos serviços que prestava, pois sabia que o que fazia o era a bem do
próximo por imperativo do seu espírito missionário e alma generosa.
A
certa altura da nossa permanência em Massangulo recebemos umas vacinas contra a
Varíola para administrar às populações (leia-se: crianças), o que fizemos,
designadamente às de Chamande. Toda a nossa equipa de enfermagem se viu
envolvida neste acto, bem como fomos acompanhados por vários elementos de
C.Caç.2418, concretamente do Cap. Acácio Tomás, que presidiu a todos estes
acontecimentos. As crianças choraram alguma coisa (às vezes muito) mas tudo
passou e decorreu bem e com a maior normalidade, aliás tudo em conformidade com
o que tínhamos delineado.
Certo
dia apareceu no Posto de Socorros um sujeito, já de certa idade (um cocuana),
que ao correr atrás de um macaco que lhe tinha invadido a machamba e que lhe
estava a dar cabo do milho, tropeçou num tronco de árvore e fez um golpe
profundo numa perna. Vi-o, tratei-o suturando a ferida e lá foi sua à vida com
a recomendação de que deveria regressar, passados uns dias, para lhe serem
retirados os pontos. Dito e feito. Passados os dias combinados apareceu,
fiz-lhe o curativo e quando dava o assunto por encerrado, tirou duma pequena
trouxa meia dúzia de ovos para me oferecer. Agradeci, disse que não era
preciso, mas fez questão que aceitasse, o que fiz. Perguntei-lhe porque fez
aquilo, tendo-me dito que o fazia por estar muito grato pelo tratamento que lhe
fizera “pois tinha ficado muito bem” (sic). Seis ovos para nós, eram
simplesmente seis ovos; para ele eram uma fortuna pois galinhas deveria ter
muito poucas, aliás como todos os outros. Eram pessoas muito pobres. Encheu-me,
no entanto, o coração com toda aquela simpatia! Ganhei o dia!
Em
Maniamba (21.7.69 a 5.1.70) o contacto com a população local, em termos de enfermagem,
foi nulo dado que tal apoio era prestado pela companhia residente.
Em
Sone (6.3.70 a 21.8.70), embora em escala muito inferior em razão do que se
passara em Massangulo, fomos dando igual apoio conforme nos era solicitado. Era
uma povoação mais pequena e, portanto, pedidos de atendimento eram muito
menores.
Neste
período de tempo demos um “salto” a Furancungo (25.5.70 a 13.7.70) para mais
uma intervenção, tendo os nossos Serviços de Saúde ficado confinados aos da
sede do Batalhão. Daí não termos tido qualquer contacto com as populações em
termos de apoio e assistência.
Para mim A SAÚDE NÃO TEM COR
Fernando Lopes
Julho 2017
ESTERILIZADOR DE AGULHAS E SERINGAS
Ao avocar este esterilizador de agulhas e seringas e por na altura dos acontecimentos ter sido considerada coisa despicienda, sem relevância e com pouco ou nulo interesse no âmbito militar, passei a ficar como um mero e zeloso "fiel depositário" desta relíquia/lembrança, que é de toda uma esforçada Companhia (C.Cac.2418).
Ao cabo de uma série de operações nos primeiros meses em Massangulo, veio a C.Cac.2418 a ter aos seus ombros a operação "S. Jorge Z", a 26.2.1969, que tinha como objetivo o "Assalto e destruição da Base Geral do Catur".
Dada a força do inimigo (constava que era composta por cerca de 300 elementos), a nossa Companhia mobilizou-se com todos os militares disponíveis. Até os da "ferrugem" (mecânicos) se envolveram para fazerem parte desta missão! A descrição de toda esta operação está brilhantemente plasmada na página 92 e seguintes do livro "Companhia de Caçadores 2418", de Fernando Carvalho, onde de pode ler: "Foram encontrados para além de diverso armamento, muitos documentos, pastas, fardamento, material militar e muito mais ".
Por analogia ao que ocorre no desporto, concretamente no futebol, quando um jogador faz num jogo 4 (Poker) ou 3 golos (Hat-Trick) guarda a bola como recordação. Não é o seu valor que está em causa, é, isso sim, o seu significado que ela carrega. Aqui foi um pouco isso ou foi isso mesmo. Com este simples gesto, todo ele inofensivo, mantem-se a "CHAMA" que nos uniu em tão difíceis momentos e situações por terras de Moçambique há mais de 50 anos.
Fernando Lopes Julho 2019
04.Testemunho de Carlos Maldonado NETO
Alferes 4º Grupo Combate
Experiência militar
Breve
resumo da minha experiência militar até à formação do grupo dos BOINAS PRETAS
(4º pelotão da C.Caç.2418).
A
10 de Abril de 1967 iniciei uma viagem duma aldeia transmontana (Paços de
Lomba) até Mafra (EPI) para frequentar um curso (C.O.M.) com duração cerca de
seis meses (Abril a Setembro).
Em
Outubro do mesmo ano fui colocado em Elvas (B.Caç.8), como Aspirante Miliciano
a dar formação aos Soldados Recrutas.
Entretanto
sou mobilizado para a guerra colonial e chamado a prestar provas de selecção,
em Lamego, em Operações Especiais. Tendo sido seleccionado frequentei o curso
de Rangeres nos primeiros meses de 1968.
Em
Abril do mesmo ano fui para Chaves (B.Caç.10) onde começou a preparação dos
militares que formaram o Grupo dos Boinas Pretas (4º Pelotão da C.Caç.2418).
Dia
21 de Julho 1968 é a partida da cidade de Chaves, como Alferes miliciano
coadjuvado por três grandes companheiros, os Furriéis, Fernando Carvalho,
Francisco Dias e Rui Batista e com os mais militares Cabos e Soldados a
caminho de Lisboa, onde nos esperava o paquete Vera Cruz no qual viajamos para
Moçambique onde cumprimos uma comissão na guerra colonial 1968/1970.
É
meu dever referir que a camaradagem, solidariedade e amizade do Grupo BOINAS
PRETAS eram de tal forma que ainda hoje nos consideramos a nossa SEGUNDA
FAMILIA.
Obrigado
Companheiros BOINAS PRETAS.
Foram
estes sentimentos do grupo dos BOINAS PRETAS que sempre existiram e continuam a
existir em todos os COMPANHEIROS QUE PERTENCEMOS À C, CAÇ. 2418.
Maldonado Neto (ex Alferes)
Maniamba
No
dia 21 de Julho de 1969 saímos de Massangulo, onde estivemos cerca de onze
meses em modo operacional denominado quadricula, com destino a Maniamba e
passando a um modo operacional denominado intervenção, tendo como teatro
operacional a famosa serra Jéci banhada nos seus sopés pelo famoso rio
Messinge. Era uma região muito controlada pela Frelimo (o então inimigo). Mesmo
sendo zona bélica mais perigosa, os militares da C.Caç.2418 mantinham boa moral
e força anímica. Dia 14 de Agosto de 1969 sofremos a maior perda, com uma mina
anticarro, que causou três mortos e doze feridos. Apesar da quebra na moral dos
militares da C.Caç.2418, a
força anímica prevaleceu pois a resposta a operações a efectuar continuava a
mesma “já devia estar feito”. A perda dos amigos foi muito dolorosa.
Aproximava-se o Natal de 1969 em Maniamba. O “modus vivendi” era em acampamento
de tendas de campanha, abrilhantado pela alegria festiva de dois ou três discos
do Teixeirinha que durante este tempo de campismo alegravam os combatentes.
Poucos
dias antes do dia de Natal recebemos a visita do Movimento Nacional Feminino.
Sendo o primeiro a chegar à pista onde aterraram dois aviões, a representante
do M. N. F., após as saudações, fez-me as perguntas da ordem: 1ª. Sobre a moral
dos militares, 2ª. Sobre o Natal de 1969 que estava próximo. A resposta â 1ª é
óbvia felizmente todo o pessoal, da C.Caç.2418, estava moralizado até porque estava
a chagar ao fim o período de intervenção, a resposta à 2ª foi com mágoa pela
festividade familiar da Quadra Natalícia visto que para a Ceia de Natal só
havia rações de combate. A Senhora do M. N. F. afastando-se por um momento
entrou no avião que a transportou regressando poucos minutos depois a dar a
notícia que o problema da Ceia de Natal estava resolvido. A Senhora do M. N. F.
despediu-se pois ainda ia a Montepuez visitar outros militares também muito
isolados. Pouco mais de uma hora depois aterraram na mesma pista táxis aéreos
transportadores de tudo para uma grande Ceia Natalícia (bacalhau, batatas,
hortaliça, vinho do porto, bolo-rei, uvas passas, etc., etc. …). Quando a
Senhora do M. N. F. se dirigiu ao avião para a viagem de regresso apercebi-me que
havia um jovem no grupo. Mais tarde tive conhecimento das personalidades que
nos visitaram nesse Natal de 1969 em Maniamba. Cumpre-me prestar homenagem à
Dra. Maria das Neves que se fazia acompanhar pelo seu filho Marcelo Rebelo de
Sousa. Em Janeiro de 1970 dia 5 terminou a nossa intervenção operacional em
Maniamba até que, enfim, vamos descansar um pouco!... Os militares, com a
alegria de quem vai para uma festa, prepararam as suas bagagens bélicas para o
embarque na COLUNA DO AMOR.
Maldonado Neto (ex Alferes)
Ainda sobre este episódio da
presença, da Dra. Maria das Neves e de Marcelo Rebelo de Sousa, na pista de
Maniamba tive a oportunidade de dialogar directamente com o Prof. Marcelo,
ainda professor universitário e comentador na TV, em Celorico de Basto, e mais
recentemente, como Presidente da República, no Palácio de Belém.
No contacto em
Celorico de Basto, aquando do nosso convívio em 2008, tive oportunidade de lhe referir que a senhora sua mãe nos
havia visitado em Maniamba, alguns dias antes do natal de 1969. Surpreendentemente
o Prof. Marcelo respondeu também lá estava nesse dia e que se lembrava que
ficou junto ao táxi aéreo, enquanto a mãe falava com militares, e até que
estava de calções. Lembrava-se também que visitaram outra companhia, também muito isolada, em Montepuez, no Cabo Delgado. Efectivamente eu tinha visto um jovem de calções junto
ao avião mas não sabia quem era. Esta feliz lembrança fez-me solicitar-lhe uma
foto sua daquela época, para incluir nas recordações da nossa companhia, e sei
que diligenciou no seu secretariado para me facultar esse pedido tendo referido
a foto de família naquele natal (1969).
É com imenso orgulho e prazer que
incluo, a foto que me foi oferecida, neste meu testemunho.
Obrigado Sr. Presidente
|
António Jorge
Rebelo de Sousa Pedro Miguel
Rebelo de Sousa Marcelo Rebelo
de Sousa
|
aria
das Neves Fernandes Duarte Baltasar
Rebelo de Sousa
Estado psicológico dos militares da C.Caç.2418 durante a campanha em Moçambique e
presença do movimento nacional feminino, em Maniamba, no natal de 1969
No sistema em que o nosso País se encontrava, com a
noção de fronteiras de Portugal entre as quais se incluíam todos os Territórios
de Além-Mar onde as Lusas Caravelas marcaram presença e os Heróis Marinheiros
registaram a identidade, tornava-se necessário lutar pela Pátria. Com os
ensinamentos impostos pelo regime à juventude, através da Mocidade Portuguesa e
também dos condicionalismos vindos da Legião Portuguesa, os mancebos eram de
tal forma mentalizados para o serviço militar obrigatório, que nos raríssimos
casos de “não apurados” se sentiam inferiores (não serviam para nada, nem para
a tropa).
A consciencialização da verdade abriu as mentes de
todos, Pais, Mães, Irmãos, Namoradas e Esposas, quando começaram a chegar os
primeiros mortos da Guerra Colonial.
O inevitável aconteceu, mais um grupo se formou no
B.Caç.10 em Chaves tendo em Abril de 1968 começado a instrução, finalizando com
o I.A.O. (Instrução de Adaptação Operacional) e ficou completo o efectivo da
C.Caç.2418. Foi assim que nasceu o embrião e durante mais de dois anos germinou
dando lugar à amizade familiar que hoje nos une. Após as viagens já descritas,
comboio de Chaves a Santa Apolónia, paquete Vera Cruz de Lisboa a Moçambique
(Nacala) e comboio até Catur, teve início a nossa primeira coluna militar em
teatro de guerra que nos levou às primeiras instalações, quartel em Massangulo,
zona operacional 100%, onde assentámos arraiais por alguns meses.
A partir de Massangulo tivemos o batismo de fogo,
primeiras operações acompanhados pelos mais experientes e para conhecimento da
zona de actividade da C.Caç.2418. Os Velhinhos, cumprida a sua missão retiraram
para o descanso bem merecido e regresso tão desejado ao cais de Alcântara. Nas
primeiras noites a dormir com o pijama de camuflado, tendo por leito o chão
moçambicano e por tecto o céu de África Oriental, algumas vezes surpreendidos por
chuvas torrenciais, ou noites tropicais que mais pareciam alimentadas pelos
ares frios do nordeste transmontano, tudo era confusão desde o barulho da fauna
nocturna até às luzes intermitentes dos insectos voadores e luminosos (como os
pirilampos). Com o passar do tempo, conhecimento dos locais mais ou menos
perigosos verificava-se cada vez mais o à vontade na moral dos militares. Após
os primeiros contactos bélicos aparece a consciencialização dos perigos a que
estávamos expostos, emboscadas e minas quer antipessoais quer anticarro. Foi em
Massangulo onde sofremos a primeira baixa, morto por acidente e também a
primeira mina anticarro que por muita sorte provocou apenas um ferido ligeiro.
Estes acontecimentos provocaram nos militares da C.Caç.2418 um espírito mais
aguerrido. Nunca compreendi se o aumento da agressividade guerreira seria
provocada por sentimento de vingança ou de autodefesa. Porém a boa relação com
as populações continuava e manifestava-se com a ajuda prestada, pelos
militares, em melhoramentos e construções de casas e aldeias, tendo sido
construída uma nova com o nome de Aldeia dos Ananases – hoje Kitamba, os
serviços médicos e de enfermagem prestados pela nossa equipa de saúde e também
os ensinamentos escolares. Foi a estada em Massangulo que mais nos marcou
positivamente no aspecto social.
No dia 21 de Julho de 1969 saímos de Massangulo,
onde estivemos cerca de onze meses em modo operacional denominado quadricula,
com destino a Maniamba e passando a um modo operacional denominado intervenção,
tendo como teatro operacional a famosa serra Jéci banhada nos seus sopés pelo
famoso rio Messinge. Era uma região muito controlada pela Frelimo (o então
inimigo). Mesmo sendo zona bélica mais perigosa, os militares da C.Caç.2418
mantinham boa moral e força anímica. No dia 14 de Agosto de 1969 sofremos a
maior perda, com uma mina anticarro, que causou três mortos e catorze feridos.
Apesar da quebra na moral dos militares da C.Caç.2418, a força anímica
prevaleceu pois a resposta a operações a efectuar continuava a mesma “já devia
estar feito”. A perda dos amigos foi muito dolorosa. Aproximava-se o Natal de
1969 em Maniamba. O “modus vivendi” era em acampamento de tendas de campanha,
abrilhantado pela alegria festiva de dois ou três discos do Teixeirinha que
durante este tempo de campismo alegravam os combatentes.
Poucos dias antes do dia de Natal recebemos a visita
do Movimento Nacional Feminino. Sendo o primeiro a chegar à pista onde
aterraram dois aviões, a representante do M.N.F., após as saudações, fez-me as
perguntas da ordem: 1ª. Sobre a moral dos militares, 2ª. Sobre o Natal de 1969
que estava próximo. A resposta à 1ª é óbvia felizmente todo o pessoal, da
C.Caç.2418, estava moralizado até porque estava a chegar ao fim o período de
intervenção. A resposta à 2ª foi com mágoa pela festividade familiar da quadra natalícia
visto que para a ceia de Natal só havia rações de combate. A senhora do M.N.F.
afastando-se por um momento entrou no avião que a transportou regressando
poucos minutos depois a dar a notícia que o problema da ceia de Natal estava
resolvido. A senhora do M.N.F. despediu-se pois ainda ia a Montepuez visitar
outros militares, também muito isolados. Pouco mais de uma hora depois
aterraram na mesma pista táxis aéreos transportadores de tudo para uma grande
ceia catalícia (bacalhau, batatas, hortaliça, vinho do porto, bolo-rei, uvas
passas, etc., etc. …). Quando a senhora do M.N.F. se dirigiu ao avião para a
viagem de regresso apercebi-me que havia um jovem no grupo. Mais tarde tive
conhecimento das personalidades que nos visitaram nesse Natal de 1969 em
Maniamba. Cumpre-me prestar homenagem à Dra. Maria das Neves que se fazia
acompanhar pelo seu filho Marcelo Rebelo de Sousa.
Em Janeiro de 1970, dia 5, terminou a nossa
intervenção operacional em Maniamba até que, enfim, vamos descansar um pouco!
Os militares, com a alegria de quem vai para uma festa, prepararam as suas
bagagens bélicas para o embarque na COLUNA DO AMOR. Regresso definitivo para
Catur e daí para a pacífica zona de Sone. Fomos ainda fazer uma intervenção
operacional de 45 dias a norte de Tete, concretamente em Furancungo, mas já
pensando no fim da comissão em Moçambique.
O objectivo permanecia sempre o mesmo que era
abraçar o Cristo Rei e passar de barco a Ponte Salazar. Era a ansiedade muito
forte do regresso e começava a contagem decrescente quando as horas pareciam
dias.
Maldonado Neto (ex Alferes)
05.Testemunho de Manuel Martins PORTELA
1ª cabo - 1º Grupo Combate
Caros companheiros e amigos ex-militares da
C.Caç.2418, sou o Portela ex-1º Cabo do 1º Pelotão- é sempre com regozijo que
vos encontro e falo para vós. Nós somos uma família sólida, e isso é o
resultado da vida difícil que tivemos. Tivemos que estar unidos para
sobreviver- má comida, por vezes rações de combate já velhas e fracas, falta de
água, ou seja, por vezes falta de condições dignas para um ser humano.
A todos eu cumprimento, mas não posso nem devo
deixar neste momento de relembrar os nossos companheiros que tombaram (Mendes,
Costa, Ferreira e Lino) dando a vida pela pátria, nem os colegas que caíram já
na vida civil, alguns vítimas da guerra, como exemplo o Joaquim António. Que o
bom Deus lhe dê a digna paz a que tem direito. Lembrar também os que vieram
feridos para a metrópole e que carregaram mazelas para toda a vida. Todos são
heróis, mas heróis semi abandonados.
Queria cumprimentar também o amigo
ex-Furriel Gama. Nunca veio aos nossos convívios mas que encontrei em Cahora
Bassa. Era sargento e liderava uma secção de homens (mistos), eram uma espécie
de sipaios.
Vou contara-vos uma pequena história.
No dia 5 de Maio de 1969, numa segunda-feira, fomos
com a gente da população à mandioca, penso que no Maleta. De regresso, ao
chegarmos às bananeiras, paramos e fomos às bananas. Depois viemos embora e fomos
comer, pois estávamos cheios de fome. De repente ouve-se barulho e chega também
um nativo de ginga a gritar que havia problema. Subimos para as viaturas e
pouco tempo depois estávamos a socorrer a C.Cav.2415 que tinha caído numa
emboscada.
Anos mais tarde, penso que em 2011,
no convívio de Barcelos, um colega que por sinal já morreu, o Vilela, e que por
acaso foi o seu último convívio, chegou à minha beira e perguntou se me
lembrava do dia da emboscada à 2415 do Lione. Disse que sim e ele disse: “ainda
hoje me custa a acreditar que deixamos as viaturas e fomos às bananas
totalmente descontraídos e eles estavam lá. Eu acho que sim, eles estavam a
ver-nos.
De seguida vou contar-vos uma
história passada comigo e da qual jamais me irei esquecer. A minha mãe era uma
mulher de fé, duma crença absoluta. Antes de eu me despedir, na ida para
Moçambique, ela entregou-me uma medalha (a medalha milagrosa) e disse-me: “Anda sempre com ela, nunca a abandones”. Isto
em a propósito do seguinte: no dia 14 de Agosto de 1969 eu estive duas vezes em
cima da segunda Berliet, a tal que foi ao ar, e duas vezes desci. Desci a
primeira porque o capitão queira falar connosco. Desci a segunda porque um
Furriel me disse: “tu e a tua esquadra
descem”. As viaturas saíram e algum tempo depois rebentou a fatídica mina.
O mesmo Furriel veio ter comigo e perguntou se eu ainda estava chateado. Sendo
um homem crente, acredito que à minha saudosa e santa mãe devo a vida.
Passados aí uns 40 anos e já nos
sessentas comecei a pensar numa futura reforma e aí vi que alguma coisa não batia
certo. Comecei a ficar revoltado. Filiei-me numa associação de ex combatentes e
lá vi este painel:
Fazendo esta retrospectiva sobre a guerra no
ultramar achei que foi injusta, cruel para os milicianos e combatentes,
estúpida e de interesses. Mas foi uma mina para os militares de carreira. Nos
fomos o tapete vermelho e o trampolim para as suas promoções e também somos nós
que tivemos as baixas (acima de 9.000) e os estropiados.
Quando
fizeram a chamada nós dissemos “pronto”. Agora a pátria não nos reconhece.
Na
associação de ex combatentes lutamos por causas. Por uma rede nacional de
apoio, que nos dê apoio na sociedade e na saúde, com consultas e tratamento dos
traumas psico traumáticos e outros. Lutamos por um cartão e estatuto de ex
combatente para que comecem a tratar-nos como pessoas de bem.
Lutamos
pela pátria, de graça. Perdemos emprego, dinheiro, família e saúde. Merecemos o
devido respeito e consideração.
Manuel Portela - Abr 2017
1º Cabo-1º Grupo de Combate
06.Testemunho
de Lino Gomes Ribeiro
Condutor
A
minha estória da vida militar em Moçambique
Em primeiro pedia a Deus pelo regresso a
Portugal.
Em
segundo lugar assumi ser responsável por tudo quanto me fosse destinado.
Fui
incorporado, em Fevereiro de 1968 no CICA1 (Centro de Instrução de Condução
Auto Nº 1), no Porto, onde fiz a recruta e, em Abril do mesmo ano, no RI6
(Regimento de Infantaria 6), também no Porto, para a formação da especialidade
de Condutor.
Acabada
a formação sou deslocado para o BC10 (Batalhão de Caçadores 10), em Chaves, e
integrado da C.Caç.2418, já constituída e mobilizada para Moçambique, quando
iniciava o I.A.O. (Instrução de
Aperfeiçoamento Operacional) que era dos últimos exercícios antes de embarcar.
Lembro que o comandante utilizou todos os especialistas (como eu) como “turras”,
e, portanto, inimigos dos Grupos de Combate, com a condição para os que se
pudessem escapar dos “ataques” poderiam regressar ao quartel mais cedo…
safei-me rapidamente.
Embarcamos para
Moçambique em 27 de Julho de 1968.
Após a nossa chegada a
Massangulo (15.08.1968) fui nomeado condutor do Comandante da Companhia (Capitão Acácio
Tomás). Respeitava e cumpria tudo quanto ele me exigia e, quando sem
compromissos, colaborava com os meus camaradas em deslocações à povoação e
outras necessidades. Tudo isto sob o “cutelo” do responsável da Secção Auto (Furriel
Filipe) que não gostava dos meus privilégios nem da minha liberdade e muito
menos da minha relação de amizade com os outros camaradas do mesmo sector e
mesmo de outros…, mas eu sentia-me protegido.
Fui
voluntário para tudo. Gostava de conhecer sempre mais e, por isso, não me
dedicava apenas aos meus serviços diários tais como ser o condutor de serviço
do Capitão, do médico e dos desenrascanços especialmente para os camaradas. Fui
voluntário, por duas vezes, inserido em Grupos de Combate para batidas na zona do
Caracol.
Em
3 de Dezembro de 1968 fui para Vila Cabral onde estive 45 dias ao serviço de um
grupo de engenheiros que faziam pesquisas, na área agrícola, para implantação de
futuros aldeamentos ou até de futuros colonos. Por essa altura, no dia 17 de
Dezembro, encontrei naquela cidade um amigo, também em serviço militar, que era
da minha terra (António Nunes). Com ele partilhei bons momentos naquela época e
a nossa amizade ainda continua.
Claro
que passei o Natal de 1968 em Vila Cabral.
De
regresso a Massangulo continuei nas mesmas tarefas, tais como levar a comida ao
médico e esposa, quando aquele estava em serviço na Missão de Nª Sra. da
Consolata em apoio à população local e para consultas aos militares no
aquartelamento de Massangulo, levá-los aos aldeamentos onde faziam visitação psicossocial
junto da população, levar o fotógrafo à Missão para fazer fotos dos colegas e outros
serviços.
Um
dia, numa quarta-feira, houve um acontecimento inesperado. No quarto dos
condutores colocamos, no topo da porta, uma terrina de sopa já azeda para o
primeiro “felizardo” que ali entrasse. Curiosamente o Capitão foi-me chamar e
levou com aquele “manjar” pela cabeça abaixo. Logo lhe dissemos que não era
para ele, mas sim para o mainato. Não fomos castigados porque o Capitão tinha
mesmo de sair pelo que se foi lavar e mudar de roupa. Não pudemos de deixar de
rir com esta cena. De seguida levei o Capitão até ao aldeamento para contactar
o Sr. Maia, pessoa respeitada da aldeia e com bons contactos.
Mais
tarde fui surpreendido, por um mainato, que me trouxe um recado: “para ir à
Missão que a esposa do senhor doutor me queria falar”. A senhora transmitiu-me que
eu iria para os transportes de Vila Cabral e mais três colegas (o Barreto, o
Alfredo e o Armindo, chamado o “150”) mas que eu não ficava lá porque tinha um
lugar especial para mim.
Fiquei
ansioso e, no dia seguinte à noite, quando me preparava para dormir, o Alferes Farinha,
da Secção do SPM em Vila Cabral, chamou pelo meu número ao que respondi imediatamente
e disse-me: “tu tens uma grande madrinha
de guerra” ao que respondi que “não
era madrinha de guerra, era minha prima”.
Amigos,
daí em diante para mim tudo mudou com os novos colegas de serviço, novos
ambientes e convívios.
Em
Vila Cabral fui incorporado no SPM (Serviço Postal Militar) onde havia três
viaturas para todo o trabalho de distribuição daquele sector: correio,
encomendas e telegramas normalmente destinados aos Batalhões e suas Companhias,
Comandos, Marinha, Manutenção Militar, aeroporto, Comando de Sector, etc. Em
resumo cobria toda a área do Comando do Sector A-Niassa, sediado em Vila
Cabral. A entrega de correio para localidades próximas era feita por viaturas,
mas, para lugares muito distantes, era usado o táxi aéreo da TAN (Transportes
Aéreos do Niassa) no qual fiz muitas viagens.
Um
dia resolvi usar o meu direito a férias, quando a nossa companhia foi destacada
para intervenção em Maniamba para onde fui e estive 15 dias. Por duas vezes fui
voluntário, inserido num Grupo de Combate, para operações na Serra Jéci em que destruímos
palhotas e cultivos. Logo na primeira operação, no regresso e ao passar o Rio
Messinge, fomos atacados pelos turras, ripostamos e não houve vítimas. Estava
previsto regressarmos “pelo nosso pé”
até ao aquartelamento. Porém a caminhada e tiroteio alteraram a situação. Depois
de recompostos, de todos aqueles acontecimentos, o Alferes Neto pediu dois
voluntários para fazerem cerca de 25 km a pé, até ao aquartelamento da
C.Art.2495, que era uma Companhia também instalada em Maniamba, para pedir
viaturas e recolha do pessoal que estava todo estourado. Mais uma vez voluntário
eu disse: “eu vou e o Fagundes também”. Lá fomos, bem atentos a todos os ruídos
ou sinais, sendo que uma boa parte da caminhada foi feita de noite. Ao
chegarmos ao aquartelamento fomos confrontados com um problema: uma sentinela
grita “Alto! Quem vem aí? A senha?” E nós não sabíamos a “senha” nem a
“contra-senha” … O que nos valeu foi eu ter dito o nome do cozinheiro daquela
unidade e era meu conhecido. Então a sentinela chamou por ele e tudo se
resolveu. Eu e o Fagundes fomos para as nossas tendas e as viaturas saíram para
recolher os nossos camaradas.
Terminadas
as “férias” regressei ao meu posto em Vila Cabral onde continuei com os meus serviços
e voluntariados. Viajei até Tenente Valadim e, de uma outra vez, de Jeep fui a
Chiponde, na fronteira do Malawi, onde fui levar um camarada. Nessa viagem, no
regresso, e após 20 Km, aparecem-me três nativos à frente da estrada e eu
pensei: “estou lixado”. Lembrei-me de um truque: nas viagens com o médico eu
transportava sempre uma caixa/gaveta com medicamentos… talvez me pudesse valer.
Um dos homens pergunta: “o nosso onde foi?”. Eu não respondi e fui
imediatamente à gaveta donde retirei e lhe dei uma mão cheia de comprimidos…
ficaram contentes. Então disse-lhes que o médico estava em Chiponde e pediu
para ir buscar uma injecção para um tratamento urgente. Então disseram: “vá depressa que não lhe irá acontecer nada”.
Arranquei e pensei: “desta já estou
safo!” mas, ao mesmo tempo, que poderia ter sido capturado e desaparecido do mapa. Uf!!
Com
a convivência e amizade dos colegas mais chegados organizamos uma festa de
natal de 1969. Todos condutores dos transportes e especialistas do Sector (eu
incluído), arranjamos tudo quanto foi necessário para a uma boa noite de natal:
barril de vinho, fardo de bacalhau, uma caixa com 50Kg de sardinha, frangos,
cabritos e o bom pão que os padeiros prepararam. Havia o toque de recolha,
dentro do aquartelamento, à meia-noite.
Era
o oficial de dia um coronel, de quem eu conhecia alguns segredos.
Montamos
um esquema: fomos entregar-lhe uma refeição; (uma travessa de sardinha, uma
sêmea previamente preparada com vapor de álcool e uma garrafa de whisky). Ele
ficou maravilhado com a lembrança e disse-me: “tem cuidado que só dou uma hora mais” ao que eu disse: “tudo bem, eu vou transmitir”. Passada
uma hora eu fui ver e ele estava a dormir e reparei que tinha comido poucas
sardinhas, bebido um pouco de whisky e comido as côdeas do pão o que fez com
ele ficasse completamente “adormecido”. Depois despejei a garrafa do whisky
para que ele pensasse que o tinha bebido todo. No dia seguinte era o meu
alferes do SPM que estava de serviço. Fomos lá ver e ele estava todo
transpirado e perguntou o que se tinha passado: eu disse o que se tinha passado
e ele disse: “obrigado pela lembrança”
… mas podia ter corrido mal!!!!!
Ainda
em Massangulo;
Um
dia Capitão diz-me: “Ó pá vai à procura do Lima e trá-lo aqui”.
Eu
fui buscá-lo, porque sabia onde ele estava, e disse-lhe: “Lima anda para cima
que o Capitão quer falar contigo”.
O
Lima diz-me: “já sei, ontem bati no “gravatinha” (*) e ele agora quer fazer-me
o mesmo. Eu vou, mas te digo que ele em mim não bate”.
O
Lima entrou no gabinete com a G3.
O
Capitão ordenou: “põe isso lá fora!”.
O
Lima deixa cair a arma no chão provocando imenso barulho.
O
Capitão diz: “vamos falar de homem para homem”.
O
Lima responde: “assim está bem”.
O
Capitão diz: “agora vais para o abrigo, ao lado da cantina, de castigo”.
O
Lima respondeu: “está bem meu Capitão”.
Entretanto
chegou a hora do almoço e não foram render o Lima. Este deu uma rajada com a G3
que pôs toda a gente nos abrigos… creio que desta provocação nada lhe aconteceu.
(*) O “gravatinha” era um nativo, sempre bem vestido
e de gravata, que vagueava com muita frequência entre o aquartelamento e a
povoação. Eram muitas as suspeitas que seria informador da Frelimo
Lino
Ribeiro – Condutor (Jun.2020)
07.Testemunho
de António Conceição COSTA
Furriel
Miliciano – Atirador/Ranger – 2º Grupo de Combate
Cinquenta anos depois é
difícil escrever, com pormenor, um testemunho da minha missão em Moçambique
integrado na C.Caç.2418. Algumas situações estão bem marcadas na minha memória
e dessas faço o meu testemunho.
Massangulo - A nossa
primeira baixa em 21 de Novembro de 1968
Apesar dos avisos, aos militares para não se
sentarem na traseira das viaturas, de quando em vez há tentações.
Foi realmente o que aconteceu ao Soldado Manuel
Mendes que, vá lá saber-se porquê, nos momentos livres se entretinha com a
Bíblia entre as mãos. Hoje, onde estiver o espírito que o animou, que lhe sirva
de algum consolo. Faço este comentário porque me encontrava na Berliet de
regresso, pela picada do Chinês, de uma operação e a caminho do aquartelamento.
Realmente a viatura dá um salto e o pessoal grita “caiu um!”. Imediatamente
parámos e fomos em auxílio. O Mendes estava inanimado! Demos informação ao
comando e continuamos o regresso ao aquartelamento de Massangulo onde tudo
estava a postos – médico, enfermeiros e outros. Quase noite… pede-se a evacuação para Vila
Cabral. Tal como nos foi descrito a Força Aérea… “nem vê-la!”. Os mecânicos, já
noite cerrada, e a ameaçar tormenta, iluminaram o campo de futebol com os
faróis dos Unimog’s e das Berliet’s, para que o “Heli” fizesse as manobras em
segurança… Não foi possível! Cerca das 11 da noite dois Unimog’s partem de
Massangulo rumo a Vila Cabral. No
segundo Unimog três colchões de espuma, das camaratas, e em cima o corpo do
Mendes, coberto com panos de tenda porque a viagem, de mais de 90 kms até ao
hospital de Vila Cabral, foi debaixo de chuva copiosa. Entregue aos cuidados do
Hospital regressamos receosos pelo nosso camarada.
Pela manhã, um rádio com a pior notícia: o
soldado não resistiu.
Onde estiveres, o meu abraço espiritual.
Massangulo – Picada do
Chinenge ou Chinês – 2º Grupo de Combate
Depois da operação “Retorno” (26.03.1969), onde
tivemos contacto com o inimigo e ao qual fizemos algum estrago, regressávamos
pela referida picada até um pequeno curso de água, ladeado de boa cana de
açúcar, e na sua margem direita um morro com uma altura considerável. Acampamos
nesse local e esperámos as viaturas para nos recolher. De repente alguém alerta:”
eles vêm para cá!”. Quase simultâneo ouve-se a “costureirinha” (AK47). Da nossa
parte foi tiro, morteirada, bazucada até desaparecerem do cimo do monte, donde
vinham. Tudo isto porquê? Porque, do nosso morteiro 60, nunca levávamos o
“prato base” devido ao seu peso. Tomo conta do morteiro, municiam-me com as
respectivas granadas (umas com carga propulsora…outras não). Cada vez que
lançava uma granada o tubo do morteiro
enterrava-se e aconteceu que, ao disparar uma granada e com a mão direita
demasiado perto da saída, fiquei com queimaduras nos dedos e palma da mão…, mas
valeu a pena!
A caminho de Mandimba
Sim, não eram apenas operações. Também fazíamos
escolta às colunas que, provenientes de Nampula, abasteciam o Distrito do
Niassa e regressavam mais tarde.
Massangulo/Mandimba: o nosso 2ºGC escoltou a
coluna de regresso a Nampula (tudo camiões pesados). Com chuva intensa, que
formava aquele “matope” (barro vermelho) uma Berliet, da escolta, derrapa e atravessa-se
na picada e “vai, não vai” ...foi mesmo em direcção ao barranco… ficou
atascada. Não tínhamos viaturas com guincho.
Os
que iam na frente seguiram, os de trás ficaram. Zona perigosa (100%). Informado
o quartel de Mandimba, mas o apoio com o guincho tarda em chegar. Está na hora
de almoço em Mandimba. Um Unimog, um condutor e mais um ou dois
voluntários rumamos a Mandimba e presenciamos o “aparato”. O Capitão da Companhia,
em Mandimba e à frente da formatura para o “rancho”, não nos disponibilizou
apoio. Zangado, chamei à atenção do meu Alferes José Carlos sobre a situação.
Neste momento o Capitão Mário Silva (Comandante em Mandimba e com fama de
“assentar as costuras” ao pessoal – como foi o caso do seu Vagomestre)
aproxima-se de nós e ordena-me ficar calado. Não gostei e continuei a comentar
a situação… ele ameaçou-me… eu respondo-lhe: “Na minha pessoa não toca! O
senhor é casado, eu também!”. Fomos para o gabinete dele. Queira lixar-me as
férias fazendo uma participação; dei-lhe todos os meus dados para o efeito e de
seguida dirigi-lhe a palavra: “Agora também quero os dados do meu Capitão para
me queixar” … o homem “engoliu em seco”.
Quando abandonamos o gabinete já tinham saído
os mecânicos da Companhia para desatascar a viatura. O meu Alferes foi portador de uma carta
dirigida ao nosso Capitão Tomás que chamava à atenção “para eu ser mais
comedido”.
Maniamba – o inferno
Em coluna, a caminho do rio Messinge e da serra
Jéci, na primeira viatura (Berliet) conduzida pelo condutor Leite, carregada de
cabos e soldados e eu na cabine ao lado do condutor. Quis a minha bexiga que era urgente atender à necessidade
fisiológica:
-
Leite, pára aí!
Estávamos
no morro sobranceiro àquela ponte no desfiladeiro, feita com troncos de arvore
que nos impunha um certo respeito (que eu digo: se ruísse… quem não morresse da
queda morreria de fome antes de chegar ao fundo). Os militares apeiam para
fazer a respectiva segurança. Estou no “alívio” e ouço: “Furriel! Está aqui
algo a brilhar!”. “Calma, não façam nada!” disse eu. Fui inspeccionar. Não
sendo especialista de Minas e Armadilhas, mas sim de Operações Especiais
(Ranger), constatei tratar-se de uma mina anticarro e ordenei ao pessoal:
“Saiam de junto de mim! Vou ver o que é possível fazer”. Rebentá-la por
“simpatia” estava fora de questão, porque denunciaria a nossa posição, pelo que
optei pelo mais difícil: levantá-la. Mãos à obra! Perdi a noção do tempo, o
suor corria em abundância, a adrenalina no máximo… com a minha faca de mato fui
descavando, descavando, descavando em redor do objecto visível. Encontrei um “monstro” verde-tropa junto com
um atado de “charutos” de TNT. Nem mais, nem menos… uma bomba de Napalm de 25,5
Kgs sem detonador no bico (a bomba e os cartuchos TNT foram desmontados e
trazidos para o aquartelamento)
Não foi daquela vez, mas foi no fatídico 14 de
Agosto de 1969 (estava de férias na Metrópole) que uma mina liquidou 4
camaradas e fez 17 feridos, alguns com grande gravidade. Há outra parecida com esta, mas com três
granadas de morteiro 82, na mesma picada.
Furancungo – Vila
Gamito
Reporta o livro da C.Caç.2418 que o 4º Grupo de
Combate, os Boinas Pretas, fez uma viagem, de ida e volta, a Vila Gamito. Eu
fiz outra, para recolha do nosso 3º GC, com o 2º Grupo de Combate. Já havia
demasiados buracos, verdadeiros poços, naquele percurso picada. Gastamos
mais de uma dúzia de granadas a rebentar minas por simpatia até que as ditas se
esgotaram. Assim, a última mina encontrada (felizmente a última), teve de ser levantada.
Avancei… era um atado de TNT e, por baixo, uma granada de mão instantânea e
descavilhada.
Felizmente
estou cá para contar…Um
bem-haja a todos que me acompanharam.
Houve
outros empenhos
Ainda em Massangulo fiz um suporte articulado e
amovível para, na Berliet da frente, fixar uma metralhadora preparada para
fazer fogo de reconhecimento. Resultado…
um radiador furado e o Furriel Filipe (responsável auto) … irado!
Também em Massangulo fui empreendedor ao
construir um alpendre à saída do quarto de alojamento dos graduados do 2º GC.
Mas a narrativa não termina. Aqueles barris que
levavam vinho ou a “água de Lisboa” … desmontei alguns e, com as aduelas, fiz
cadeiras de baloiço (há fotos que testemunham) e nelas passamos momentos de bom
descanso, ora lendo, ora escrevendo, conversando e ouvindo música do Rádio
Clube da Beira onde, nos discos pedidos, se ouvia: “Para o David Miserável
Pouca Sorte – Roberto Carlos -Te amo, te amo, te amo”.
Camaradas
e “camaradas”
Um
belo dia em conversa com o “Cabo do Lixo” (militar responsável pela limpeza
do aquartelamento) este diz-me algo a que não dei importância. Nesse
momento passava o Alferes Meia-Via* e ordenou-me para fazer uma participação daquele militar por ofensa verbal. E eu? Nem uma, nem duas! Nada disse, nada fiz! Perante
a minha atitude o oficial elabora a participação e obriga-me a assinar aquele
documento… e eu não soube como recusar. Resultado:
dez dias de detenção ao Cabo do Lixo.
*Gama
Henriques
A vingança serve-se
fria
Após
um patrulhamento, em que foram envolvidos os 1º e 2º GC, enquanto estávamos à
espera de ser recolhidos falava com alguns camaradas sobre o Morteiro 60 dizendo
que mandaria facilmente uma granada para a crista do monte à nossa vista.
Diz
o oficial ironicamente: “É uma grande certeza!”.
Eu?
“nem é tarde, nem é cedo” … foi de imediato… executei o tiro na muche!
No
dia seguinte tinha uma caixa de cerveja 2M-Mac-Mahon debaixo da minha cama.
Obrigado
Gama Henriques.
Antonio
Costa – Furriel Miliciano (Set.2020)
08.Testemunho
de José de Jesus RIBEIRO
1º
Cabo – Atirador – 2º Grupo de Combate
(Vítima do rebentamento de mina anticarro que
ocorreu a 14 de Agosto de 1969 em Maniamba)
Fiz
parte do 2º Grupo de Combate, sob o comando do Alferes José Carlos Henriques,
sendo comandante da minha Secção o Furriel Gamaliel Correia.
Iniciei
a minha vida militar em 28 Janeiro de 1968, no Regimento de Infantaria 13, em
Vila Real, onde fiz a recruta e, de seguida, ingressei no Batalhão de Caçadores
10, em Chaves, onde fiz a especialidade de atirador no pelotão do Aspirante
José Carlos Henriques.Quando
se formou a Companhia de Caçadores 2418, nos fins de Maio de 1968 e já
mobilizada para Moçambique, fui integrado definitivamente no 2º Grupo de
Combate.
Uma estória pessoal
14
Ago 69 (5ª feira) - Operação Sagres 3
Este
dia foi particularmente marcante da minha vida. Num momento, um jovem audaz e
cheio de vida, é projectado para muitos metros depois do rebentamento de uma
mina na picada que nesse dia nos levava até à serra Jéci para destruição da
estrutura do inimigo, a Base de Maniamba. A
mina rebentou no rodado traseiro da segunda viatura. Eu fazia parte dos
militares que, nessa viatura, se acomodavam na caixa de carga.
Não
consigo lembrar-me de muitos pormenores. Sei que fui projectado, provavelmente
para muito longe da viatura, mas não compreendia o que tinha acontecido…
sangrava e não me podia mexer. O meu fémur direito soltou-se da anca, a minha
vista, do mesmo lado, sangrava e o meu nariz partido. Muitas
dores, muito desespero.
Do
local do rebentamento da mina até ao aquartelamento era uma longa distância,
principalmente para quem sofria de dores atrozes e muito medo do que viria a
seguir. Chegado
ao aquartelamento e já identificado para ser evacuado fui, de imediato, para a
pista onde já me aguardava a pêga (avião pequeno) que me transportaria, com
outros camaradas igualmente feridos graves, para o hospital de Via Cabral onde
estive apenas três dias porque ali não tinham recursos para tratar dos meus
ferimentos.
Também
por avião sou transferido para o Hospital de Nampula onde estive internado nos
dois meses seguintes. Este tempo foi apenas dedicado à recolocação do fémur na
cavidade da anca. Já se suspeitava que alguns músculos ou tendões teriam ficado
muito danificados no acidente, o que se veio a confirmar nos meses seguintes.
Não foi utilizada qualquer cirurgia. Um ferro prendia o fémur no sentido de o
fazer reentrar na anca. Perna esticada, pendurada e agarrada a um peso colocado
num suporte, tipo guindaste, aos pés da cama e sem me poder mexer. Foi um
tormento, durante muitas semanas, que me desesperava a ponto de desejar morrer
a sofrer daquela maneira.
Durante
este período, os ferimentos na vista e nariz que foram ignorados neste
hospital, iam cicatrizando… e eu nem força tinha para reclamar!
Aqui
encontrei um amigo de infância, com a função de maqueiro. Como eu não tinha
qualquer mobilidade pedi que escrevesse à minha família para lhes dizer onde eu
estava e que estava bem. A minha família não acreditou nesta informação porque já
havia sido informada da minha morte em combate. Mais um momento difícil, para
todos, que ficaria resolvido mais tarde.
Em
Outubro (1969) sou transferido para o hospital de Lourenço Marques, desta vez
de comboio, com o objectivo de resolver os problemas da vista, que tinha muitos
incómodos internos, e do nariz que ficou torto. Fui submetido a diversas
cirurgias que resolveram estes ferimentos.
Em
Dezembro sou enviado para Lisboa sigo para umas instalações militares, perto do
Hospital da Estrela, para fisioterapia. O objectivo foi a recuperação de
músculos na perna e tendões, devido ao acidente, ao tipo de tratamento
utilizado em Nampula e pela ausência de exercício durante quatro meses. Este
tratamento ocorreu durante seis meses. Durante este tempo tive a oportunidade,
nos fins de semana, de me deslocar a casa onde pude demonstrar que estava
“vivo”, conviver com a família e retomar o meu namoro.
Em
Julho 1970 sou dado como apto (no ponto de vista deles) com Guia de Marcha para
me apresentar no BC10, em Chaves.
Nesta
deslocação eu ia preparado para fazer o espólio e voltar à vida civil…
enganei-me! Dado que a Companhia ainda estava em missão eu teria de esperar a
sua chegada e só então poderia fazer o espólio. Esta situação era desesperante,
mas foi minimizada com algumas influências de amigos e mesmo oficiais que me
facilitavam muitos dias de ausência no quartel para convívio com a família, a
namorada e até casar mesmo antes da chegada da Companhia. A Companhia chegou a
Chaves, no dia 17 de Setembro de 1970.
Finalmente
o espólio, finalmente acabou a tropa.
A minha perna, que nunca ficou estabilizada, foi-se deteriorando ao longo do
tempo devido ao processo utilizado para encaixar o fémur. Em 2008 tive de
colocar uma prótese de anca porque a degradação ao longo do tempo foi
consecutiva.
Uma nota final
Não
fui o único! Daquela
maldita mina resultaram:
3
Mortos: 1º Cabo António Leite COSTA, 1º Cabo António Manuel FERREIRA, Soldado
LINO Ribeiro da Silva.
17 Feridos muito graves e graves (evacuados para Vila Cabral): Eu e os camaradas
Joaquim António, Alberto Reis, Joaquim Veloso, António Cunha, Lima Silva, David
Oliveira, Jaime Barbosa, Manuel Teixeira, David Vilas-Boas, 4 elementos da
população local, contratados como carregadores e ainda, embora sem gravidade nem necessidade de evacuação, os Furriéis
Balagueiras e Pinela e o 1º Cabo Mouta.
Os
muitos graves passaram por diversos hospitais até chegar à Metrópole.
Para
além de mim foi o caso dos camaradas: Joaquim António, Alberto dos Reis e
Manuel Lima e Silva.
Uma vida difícil para
quem serviu a pátria… para nada!
José
Ribeiro – 1º Cabo (Ago.2020)
09.Testemunho de Constantino VILELA Rocha
Soldado - 1º Grupo Combate
Guerra
do Ultramar
Eu
ainda hoje sonho;
Com
a guerra em que eu fiz parte.
São
traumas que vão aparecendo;
De
quando eu andava em combate.
Eu
já estou mentalizado;
Para
tudo aquilo que for.
Na
guerra já eu andei;
E
venha lá o terror.
O
bom e grande guerreiro;
Conta
tudo com alguma graça.
Os
combates que eu tive;
Foram
na zona do Niassa.
Com
todo os maus bocados;
Cumprimos
o nosso dever.
Foi
pena o que aconteceu;
Que
alguns tiveram que morrer.
Em
reflexo da guerra;
Temos
confraternizado; em parte.
A
união dos que ainda existe;
Antes
que no deia um enfarte.
O
dia do almoço;
É
sempre um dia de emoção.
É
um dia muito lindo;
Mas
mexe com o coração.
Já
que chegamos até aqui;
Vamos
mesmo continuar.
Com
mais força e alegria;
Para
podermos enfrentar.
Constantino Vilela Rocha –
28.06.2011
(Cedidos pelo Manuel Portela – Jul 2017)
10.Testemunho de Marcelo Rebelo de Sousa
Presidente da República Portuguesa
O nosso Presidente da República consta
da história da C.Caç.2418 aquando, acompanhando sua mãe Sra. Dra. Maria das
Neves, visitou a nossa Companhia, em Maniamba - no distrito de Niassa - nas
vésperas do natal de 1969 (*).
Em Novembro de 2018 tivemos a
oportunidade de lhe fazer entrega pessoal da nossa 1ª edição, que mereceu o
texto que passamos a transcrever.
MENSAGEM DE SUA
EXCELÊNCIA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
EVOCAÇÃO MISSÃO EM
MOÇAMBIQUE
É com muita honra e prazer que me associo a
esta evocação da vossa missão em Moçambique, em anos que coincidiram,
parcialmente, com a presença de meus pais e dois irmãos, exercendo meu pai a
função de Governador-Geral daquela então constitucionalmente qualificada de
Província Ultramarina. Mais tarde, com a revisão constitucional de 1971,
passada a ser tratada como Estado de Moçambique.
E Estado soberano desde a independência em
1975.
Meu Pai esteve nessa também missão desde Julho
de 1968 até Janeiro de 1970. E, apesar de ter sido um período muito curto, foi
intensíssimo e correspondeu, porventura, ao tempo mais feliz e politicamente
mais realizado da sua vida.
Percorreu Moçambique, de lés a lés, sem parar.
Reformou a Administração Pública, a Educação e, sobretudo, a Saúde, ensaiando o
que viria a ser, mais tarde, o começo do Serviço Nacional de Saúde, em
Portugal. Deu atenção às desigualdades sociais. Fomentou a economia e melhorou
as finanças públicas.
Tentou estreitar relações internacionais, para
além dos Estados vizinhos mais alinhados com a política portuguesa da altura.
Esteve no Malawi e na Suazilândia e explorou pontes de entendimento, que não
tiveram o sucesso desejado, com outros Estados limítrofes, para além da África
do Sul e da Rodézia, como a Zâmbia.
Defendeu maior autonomia política, legislativa
e administrativa.
Conseguiu permanente boa relação com
Comandante-Chefe General António dos Santos e com os Comandantes dos três ramos
das Forças Armadas, Brigadeiros Francisco da Costa Gomes, Kaúlza de Arriaga,
Diogo Neto e Comandante Tierno Bagulho.
Visitou os nossos militares em Cabo Delgado e
no Niassa, em múltiplos ensejos.
Arrancou
com Cahora Bassa, à data chamada Cabora Bassa.
Muitas dessas e de outras deslocações foram
feitas com minha mãe e meus irmãos, que lá viviam e estudavam.
Eu, que lá passei as férias grandes e de Natal,
de Agosto a Outubro de 1968 e de Dezembro a final de Janeiro de 1969, e de
Julho a Outubro de 1969 e de Dezembro de 1969 a Janeiro de 1970, passei boa
parte desses cerca de 10 meses a conhecer, também, Moçambique.
Em 1968,tal como em 1969, os Natais foram
vividos no Norte, junto das Forças Armadas. E o dia 1 de Janeiro na Ilha de
Moçambique, onde sedeara, noutros tempos, a capital de Moçambique, e, de onde,
meu pai falava, pela rádio, aos moçambicanos.
Recordo-me muito bem do Natal de 1969, da
peripécia que foi a ida, com a capotagem da avioneta numa aldeia onde
aterramos, mãe e irmãos, quase à noitinha, do jantar e baile, em que dancei com
minha mãe, e de que há fotografia, das palavras de meu pai aos militares
presentes e ausentes, do ambiente familiar e muito caloroso daquela noite e
daqueles dias.
Bem como do dia 1 de Janeiro de 1969,na ilha de
Moçambique, reconstruída por meu pai, em vários dos seus monumentos, com uma
multidão afetuosa e envolvente.
Moçambique era, e continua a ser, uma natureza
lindíssima e variada, um povo fraternal e empático, um fenómeno de atração
quase mágica, que nos marca para toda a vida.
O
meu pai deu a um livro de discursos lá feitos um título que resumia esse
encanto único: "Grande Terra, Grande Gente".
E eu repeti-o, ao realizar a minha primeira
visita de Estado, como Presidente da República Portuguesa, precisamente, a
Moçambique.
Reencontrando a mesma Grande Terra e Grande
Gente, com as quais nunca havia parado de conviver, nos anos 70, 80, 90,e no
novo século, dando aulas em Maputo, e podendo afirmar, sem hesitações, ser
Moçambique a minha segunda Pátria.
Um abraço de sinceras felicitações por esta
vossa obra é o que vos envio, ao alinhavar estas recordações de um tempo e de
uma Terra e de uma Gente que nos foram e são comuns. Cinquenta anos depois, mas
com a eterna juventude de espírito e a inquebrantável força de vontade que fez do
nosso Portugal o que é e mais ninguém consegue igualar!
Marcelo Rebelo de Sousa
Lisboa,
Palácio de Belém, 18 de maio de 2020
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