024.TESTEMUNHOS

TESTEMUNHOS

Seguem os testemunhos que, até esta data, foram recebidos dos nossos camaradas e Presidente da República.
Cada testemunho representa o sentimento muito pessoal da sua vivência dentro e com a C.Caç.2418.

    1. Alcino Gomes de MOURASoldado Condutor
    2. Artur Beirão, Major e Oficial de Operações do B.Caç.1936 em Catur
    3. Fenando da Silva Sousa LOPES, Furriel Enfermeiro
    4. Carlos Maldonado NETO, Alferes 4º Grupo de Combate
    5. Manuel Martins PORTELA, 1ª cabo - 1º Grupo de Combate
    6. LINO Gomes Ribeiro, Soldado Condutor
    7. António Conceição COSTA, Furriel Miliciano – Atirador/Ranger – 2º Grupo de Combate
    8. José de Jesus RIBEIRO, 1º Cabo – Atirador – 2º Grupo de Combate
    9. Constantino VILELA Rocha, Soldado Atirador - 1º Grupo de Combate
    10. Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa



    01.Testemunho de Alcino Gomes de MOURA
    Soldado Condutor

    Vítima do acidente ocorrido em 21 junho 1969 no Rio Zambeze na travessia entre Chupanga e Mopeia.

    Não me lembro quem foi nomeado para o levantamento de uma Unimog 411, em Lourenço Marque que se destinava à nossa companhia em Massangulo, mas quando soube ofereci-me para essa missão porque, naquela altura, eu necessitava sair daquela zona e respirar novos ares.
    Então fui até Lourenço Marques.
    Recebemos as viaturas em Lourenço Marques e, em coluna, avançamos em direcção à Beira e depois tomamos uma estrada ao longo do Parque da Gorongosa, passando por Inhaminga, até Chupanga, onde paramos. Tínhamos percorrido 1.400 Km e ainda faltavam 1.000 Km até Massangulo. A travessia do Rio Zambeze, entre Chupanga e Mopeia, era feita por batelões. Para embarcar esperamos 3 dias porque o batelão que nos transportaria estava em reparação. Havia um outro batelão que, por ser mais pequeno, teria que fazer o transporte por duas vezes e talvez por isso foi decidido esperar pela reparação do batelão maior. No dia 21 de Junho de 1969 embarcaram as 26 viaturas e cerca de 150 militares. O batelão era constituído por 3 barcaças que eram “juntas e tampadas” por um enorme estrado e com uma pequena cabine que deveria ser a do comando. Cada barcaça lateral tinha um potente motor: reparei que as frentes das barcaças não eram tapadas e que o estrado do batelão estava muito perto da superfície da água devido ao peso das viaturas e militares. Não faço ideia da distância entre as duas margens nem do tempo previsto para a travessia, mas lembro-me que o andamento era muito lento. Lembro-me que começou a chover e muitos militares entraram para as viaturas, abrigando-se. Talvez uma meia hora depois o motor esquerdo deixou de funcionar e o batelão começou a rodar levemente o que criou instabilidade no controlo o que facilitou a entrada de água não só no convés como também nas frentes das barcaças, que estavam a descoberto. Esta situação criou uma primeira inclinação do batelão e o início do deslizamento de algumas viaturas e, a partir daqui, não conseguiram controlar mais o batelão que se inclinava ainda mais devido ao deslizamento de todas as viaturas. A ondulação inundou o convés e somos projectados para fora do batelão. Quando caí na água lembro-me de ter caído por cima de outros militares já aflitos e em pânico: era uma situação confusa de homens, gritos, pedidos de socorro, sacos, malas, caixas… eu sei lá. De repente senti que um militar se agarrava ao meu dólman para não se afundar. Eu já o havia desapertado mas perante aquele risco soltei os braços e o dólman saiu: no momento pensei que, manter aquele rapaz agarrado a mim, eu não me safaria. Mantive-me à tona, nadando como podia e sabia (que era pouco) ao mesmo tempo que era levado pela corrente do rio. Eu queria libertar-me rapidamente daquela confusão e tentar safar-me por conta própria. Fruto do naufrágio boiavam muitos materiais como sacos, malas, caixas, etc. e muitos homens. Um camarada, também na água, repara em mim e na minha aflição e atira-me um saco militar que me serviu de bóia e mais uma vez me deixei levar pela corrente enquanto os meus pensamentos eram tomados pelo pânico. Entretanto o saco encharcou e já não era uma bóia…era um peso, então larguei-o e tentei nadar aproximando-me da margem, sem o conseguir. Já me sentia a fraquejar, estava a ficar sem forças, já pensava que o meu fim estava perto… e vi a margem tão perto… nesse momento fui ao fundo (creio que pela segunda vez) mas algo me fez reagir e voltei à tona. Entre as coisas que boiavam passa, na corrente muito rápida, uma mala pequena (não sei se de cartão ou couro) que parecia vir ter comigo… agarrei-a e coloquei-a debaixo do braço direito e continuei boiando à espera de sentir o leito do rio… eu só queria sentir o chão. Mas a mala rapidamente encheu e, de novo fui ao fundo… é agora que vou, pensei eu. Entretanto eu ia vendo camaradas, ao sabor da corrente, esbracejando e gritando… pouco tempo depois desapareciam da minha vista e já não os ouvia… seria eu o próximo? De repente naquela amálgama toda vejo, ao meu encontro, algo parecido com o braço (escala) de uma viola mas não sabia se a conseguiria apanhar… as forças eram cada vez menos. Consegui agarrar a viola, que tinha uma capa (talvez impermeável), e meti a caixa da viola entre as pernas e a escala bem juntinha ao meu peito com toda a força que eu tinha… estava de novo a boiar mas completamente esgotado… já estava na água há cerca de meia hora. À frente o rio fazia uma curva à direita mas a corrente levou-me em frente e para perto da margem esquerda. Afundei o corpo na esperança de tocar no leito… naquele momento nada senti. Um pouco mais frente afundei de novo e toquei no leito do rio. Aos poucos e já sem forças fui-me aproximando da margem até sentir os pés no chão… a areia estava perto. Muito lentamente, ainda com a viola entre as pernas e depois de gatas, fui saindo do rio mas não tinha forças para me levantar. Completamente esgotado deitei-me na margem. Pouco depois ouvi vozes, pareciam chamar por mim ou dirigidas a mim mas não conseguia distinguir donde vinham. Eu tentava falar ou até gritar mas nenhum som me saía ou o que saía ninguém podia ouvir… eu não conseguia falar. De novo as vozes “vem para aqui!” e eu dizia “não tenho forças!”. Para chegar ao meu salvador tinha que atravessar uma poça de água mas o meu pânico impedia-me de avançar pois tinha medo de entrar de novo na água. A voz era de um Furriel também naufragado mas que tinha encontrado abrigo e segurança. Levou-me para junto de uma fogueira, feita por uns nativos, que usaram a madeira das suas próprias palhotas. Junto à fogueira já estavam outros militares cansados e gelados. Deveriam ser umas 6h da tarde e já era muito escuro.
    Às 3h00 da manhã fomos recolhidos e levados para um destacamento militar em Mopeia. O comandante do destacamento mandou levantar todo o pessoal das camas para as ceder a nós, descansarmos e dormir. Lavei os pés, deitei-me mas não conseguia adormecer: incrivelmente deu-me para ler uma revista (não sei porquê) mas depois adormeci.
    No dia seguinte começaram a chegar os corpos dos mortos… eram muitos, parecia não ter fim. Creio que não apareceram todos.
    Não houve urnas suficientes e num armazém, frente ao destacamento, fizeram uma série de caixotes que serviram de urnas que seguiram para o cemitério local.
    Apareceu entretanto o dono da viola, o Furriel João Meireles, a quem tive que entregar aquele instrumento salvador.

    Este é o meu testemunho, mas eu sinto que as palavras não são bastantes para transmitir aqueles 30/40 minutos da minha vida.
    Alcino Moura (25 Junho 2015)

    Comentários
    O testemunho, do nosso companheiro Moura, enriquece muitos dos textos já publicados sobre este tema, pelas informações sobre o batelão e do desenrolar dos acontecimentos que originaram aqueles momentos tão trágicos que, no caso dele, são tão pessoais e únicos. Obrigado Moura. O teu testemunho também é a nossa história. Um grande abraço.
    Fernando Carvalho (ex furriel) (29Jun15)

    Li e reli este impressionante relato do naufrágio de Mopeia, feito pelo Soldado Condutor Moura da C.Caç.2418, um dos sobreviventes. Nunca lhe tinha querido fazer muitas perguntas, para não lhe reavivar a memória e fazer reviver aqueles momentos de tragédia e enorme aflição! Julguei que o apoio da viola o tivesse ajudado mais e não tivesse sido tão difícil sobreviver. Admiro a coragem e felicito-o pela sua persistência na luta pela Vida. Um abraço.
    Acácio Tomás (ex Capitão) (29Jun15)

    Após leitura atenta do relato feito pelo nosso amigo Alcino Moura que vem sendo referido e por pouco tempo que nos detenhamos sobre toda esta tragédia, ficamos angustiados com tanto sofrimento e dor por que passaram os nossos amigos.
    Lembro-me também dum outro Moura (maqueiro) que veio a sucumbir em tal tragédia. Este esteve em Massangulo por cedência do B.Caç.1936 (Catur).Era, além de bom maqueiro, um bom amigo e pessoa bem-disposta e divertida quando fazia uso dos seus dotes de hipnotismo. A magia desta vez, infelizmente, trocou-lhe as voltas. Que a terra lhe seja leve!
    Ao Alcino Moura, condutor da nossa C. Caç.2418, envio um abraço e desejos duma vida longa.
    Fernando Lopes – (ex Furriel Enfermeiro) (11.07.2015)

    Neste desastre morreu também um nosso camarada do B.Caç.1936, o maqueiro Moura (curiosamente também chamado Moura). Todos o conhecíamos bem e estimávamos. Era um bom hipnotizador, que varias vezes actuou para o pessoal do batalhão, divertindo-nos imenso. E este, infelizmente, não se salvou. Paz à sua alma.
    Pedro Tavares Madeira (BC1936)

    Dois condutores da C.Cav.2415, aquartelada em Lione, estão na lista dos falecidos.


    02.Testemunho de Artur Beirão
    Major e Oficial de Operações do B.Caç.1936 em Catur

    Este aerograma foi escrito quando a C.Caç.2418 estava em Intervenção, desde finais de Junho de 1969, em Maniamba, distrito do Niassa e já  não dependia, operacionalmente, do B.Caç.1936, mas sim do B.Caç.2853-Macaloge.
    Do texto deduz-se que o Sr. Major Beirão o escreveu em Vila Cabral, depois de ter estado no Sector, a tratar de outros assuntos e a comentar o azar da C.Caç.2418.
    Foi escrito quinze dias depois da nossa Companhia ter sofrido um incidente terrível com uma Berliet que accionou uma Mina anti-carro, muito reforçada, que provocou a morte de 3 Militares e 17 Feridos, dos quais, três muito graves, foram evacuados para a Metrópole. 
    As palavras do Sr. Major Beirão mostram, para além da estima e do reconhecimento do nosso trabalho, o Homem e o Militar que ele foi.  



    Para facilitar o acesso ao conteúdo do Aerograma transcrevemos o mesmo:

    Para:              Capitão Acácio Gomes Tomás           SPM 4624
    Remetente:     A.Beirão                                         SPM 9644  
    SPM 9644, 29 Ago 69                                                                                 

    Meu caro Tomás:
    Desculpe não tratá-lo por Doutor. Para mim é o Tomás, um amigo que um dia encontrei em África a cheirar a “checa” e que em 27 Fev deixou de o ser graças a “S.Jorge Z “; para mim é o Tomás que eu muito considero e estimo.
    Há bastante tempo que pretendo escrever-lhe. Bem sei que as minhas palavras não remediarão nada. Não recuperarão um morto; não darão alívio a um ferido; não evitarão o sofrimento dos vivos. Bem sei tudo isso mas quero escrever-lhe. Sinto obrigação de escrever-lhe. Todos esses rapazes da 2418 foram do 1936 e eu, sendo 1936, tenho na alma um cantinho para cada um de vós. Senti o vosso azar. Não chorei com os olhos, os vossos mortos; Mas tenha a certeza que os chorei com a alma, tanto quanto devemos chorá-los (Que para além de certo limite não vale a pena chorá-los, mas ter-lhes inveja por quanto foram e são).
    Além deste extravasar de afeto queria dizer-lhe que tendo vindo ao SECTOR, estive a falar de vós, da 2418. E quero transmitir- lhe, para o animar mais e aos seus rapazes, o excelente CARTEL que a Companhia aqui tem. De todas as que estão em funções semelhantes à 2418, a vossa é de LONGE A MELHOR … São ELES que o dizem, repare... E eu o ouvi com muito agrado, tanto que me leva a comunicar-lho. Claro que eu ainda interferi na conversa dizendo: Pudera! Pertenceram ao 1936, como é que queriam que não fossem bons!…
    Aqui lhe ficam, pois, as minhas felicitações, traduzidas num grande abraço para si e para os seus rapazes. Também já sei que dentro em pouco (no final desta intervenção) ireis recuperar, parece-me que um mês ou quase, lá no Catur. Lá vos espero, procurando ajudar-vos a recuperar as forças físicas e espirituais (que ambas são extraordinariamente precisas), na conjuntura que vivemos. E por hoje é tudo. Desejo que receba boas notícias de toda a Família.
    Um abraço para os seus alferes, saudações para os seus Sargentos e praças. Para si, meu caro Tomás, um abraço do “ velho” amigo (talvez amigo velho…),
    Artur Beirão


    03.Testemunho de Fenando da Silva Sousa LOPES
    Furriel Enfermeiro

    UMA CAMINHADA DE 4 ANOS...
    Chamado a prestar serviço militar em 1966, apresentei-me na Escola Prática de Infantaria (Mafra), a 12 de Setembro, para frequentar o Curso de Sargentos Milicianos. Foi o início da minha vida militar com algum esforço, sacrifício e muitas novidades no seu desenrolar.
    Recordo-me que o Aspirante que nos deu formação tinha o nome de Costeira.
    O Comandante da Escola era o Coronel Manuel Ribeiro de Faria. Recordo-me ainda do seu nome pois tantas foram as vezes que o seu nome fora mencionado nas formaturas de fim de dia e outras.
    Daqui fui transferido, em 3 de Janeiro de 1967, para o Regimento de Serviço de Saúde, à Estrela (Lisboa), a fim de frequentar o Curso de Enfermagem que veio a terminar a 18 de Março do mesmo ano, culminando com a minha promoção a 1º Cabo Miliciano a 3 de Abril de 1967.
    Foi uma experiência interessante, para mim totalmente nova, pois nunca tinha sonhado vir um dia a ser enfermeiro, eu que, civilmente, vinha duma área totalmente diferente (Tribunais).
    Recordo-me que para efeitos de alojamento e alimentação estávamos aquartelados no Batalhão de Sapadores dos Caminhos de Ferro (BSCF), em Campo de Ourique e, todos os dias, em formatura, deslocávamo-nos para uma dependência da Basílica da Estrela.
    Terminada esta fase fui transferido para o Hospital Militar do Porto a fim de fazer o meu estágio de enfermeiro, estágio esse que foi levado a efeito nos Serviços do Bloco Operatório. Reconheço hoje que foi o melhor que me podia ter acontecido, pois foram muitos os conhecimentos adquiridos, os quais vim a pôr em prática mais tarde, já em Moçambique, ao enfrentar situações limite. Para além dos conhecimentos referidos quero salientar o sangue frio “conquistado”, perante situações difíceis e adversas naquele Bloco Operatório.
    Na continuação desta minha Caminhada, em 13 de Março de 1968 já no Regimento de Infantaria nº 8 de Braga, unidade para onde fora transferido, fui promovido ao posto de Furriel Miliciano.
    As instalações da Enfermaria do R.I.8 onde estive a prestar serviço (Rua de Camões) hoje pertencem à Universidade Católica (Faculdade de Ciências Sociais).
    Passados que foram alguns meses e após uma curta passagem pelo Hospital Militar do Porto, como doente, apresentei-me em Chaves para integrar na Companhia com os demais camaradas, já na parte final, porquanto já decorria o I.A.O. (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional).
    No decurso do I.A.O. tenho presente que numa “saída” do acampamento até ao B.Caç.10 - para tomar um banho refrescante – um Austin Mini, conduzido por uma senhora, ao fazer uma curva à entrada de Chaves, ela que vinha em sentido contrário, cortando a curva, raspou na nossa viatura provocando alguns danos no seu veículo. De pronto assumiu a culpa, assinando uma declaração que fiz entregar ao Oficial de Dia do B.Caç.10. Não passou de um pequeno susto. Tudo Ok.
    Chegado o dia 22 de Julho de 1968 partimos nós de comboio para Lisboa. Foi uma viagem que nunca mais acabava, longa e apertada. Seguiam duas Companhias: a nossa e a C.Caç.2419.
    No dia 23 de Julho esperava-nos o navio Vera Cruz no Cais da Rocha de Conde D’Óbidos.
    No trajecto de Santa Apolónia para o Cais a viatura que seguia à nossa frente, por razões que ignoro, foi-se abaixo. Acto contínuo o Furriel Filipe, que seguia na minha viatura, pôs-se logo em acção e disse ao nosso condutor para encostar a viatura à traseira da que ia à nossa frente para a empurrar. Assim fez. Num abrir e fechar de olhos a viatura pegou e pôs-se em andamento. Aqui ficou logo demonstrada a competência do Filipe, mesmo nas coisas que parecem que não têm dificuldade maior. Mas foi preciso resolvê-lo e foi bem resolvido e a contento de todos.
    Feito o desfile de despedida, entramos no Vera Cruz.
    Jamais esquecerei um Capitão que se encontrava a meu lado a acenar e a dizer adeus a alguém, com as lágrimas nos olhos, que procurando pelo meio da multidão verifiquei que era para um sujeito, mais ou menos da nossa idade com um bebé ao colo, que o levantava o mais alto possível para que pudesse ser visto. Partiu-me o coração ver aquela imagem. Suponho que seria um filho.
    Eu não quis ninguém em Lisboa para despedidas. Era muito doloroso aquele cenário.
    Passado algum tempo o Vera Cruz iniciou a viagem sulcando as águas do Atlântico. Já longe e bem longe, e com alguns dias de viagem, deparei-me pela primeira vez com peixes voadores que, conforme o barco rasgava as águas, saltavam à sua frente formando um “corpo de segurança” aos nossos soldados. Grande guarda de honra!
    Passamos por Luanda, uma paragem por pouco tempo, e retomámos a viagem rumo a Lourenço Marques. No Atlântico não tivemos problemas de maior, tirando aqueles enjoos inevitáveis. Dobrado o Cabo e entrando no Oceano Índico, a coisa mudou um pouco de figura. O mar era mais agitado.
    Finalmente, a 8 de Agosto de 1968 chegamos a Lourenço Marques. Desembarcamos e fizemos um desfile todo pomposo e com toda a jactância pelas Avenidas da cidade.
    Gostei da cidade pois era bonita e de ruas muito alinhadas.
    A viagem continuou até que, a 13 de Agosto, chegamos a Nacala, porto de mar espectacular com uma baía enorme. Saímos do navio, distribuíram-nos armas (G3) e entramos para o comboio, que diria, das “Tormentas” até Catur. Tormentas porque não cabia mais uma mala que fosse, tantos eram os militares que ali iam “amontoados”. Coisa só vista e vivida!
    Esta viagem está cabalmente descrita pelo nosso amigo Fernando Carvalho sob a epígrafe “Nacala a Massangulo”. Descrição minuciosa e perfeita.
    A certa altura da viagem, já noite, alguns soldados que iam junto às janelas, começaram a disparar até que, de repente, ouviu-se uma voz a mandar parar com o fogo. O que é que se passou? Só confusão para quem está a tomar contacto com a realidade pela primeira vez. Julgaram ver “turras” nas encostas dos montes que ladeavam a linha do comboio.
    Éramos muito “checas”, mesmo!
    A viagem prosseguiu e chegámos ao Catur, a 15 de Agosto. Saímos do comboio e retomamos a viagem até Massangulo, em viaturas, nosso destino final. Chegamos já de noite.
    Sobre a nossa permanência em Massangulo já expendi algumas considerações sobre o que foi a nossa vivência e dificuldades.
    O ponto principal que eu aqui quero realçar, e dar ênfase, radica na amizade e entreajuda de todos nas grandes e pequenas dificuldades. Foi o que nos ficou ao cabo de tantos anos porque, os dois vividos em Moçambique, foram-no com muita intensidade e solidariedade.
    Permanecemos aqui em Massangulo até 21 de Junho de 1969 e sob a alçada do Batalhão de Caçadores 1936 do Catur, a que estávamos afectos.
    Faço aqui um pequeno parêntese para contar que a rádio que mais se ouvia naquela zona era a Rádio Pax da Beira e, ao jeito do que ocorria na Rádio Renascença, também havia os discos pedidos. A certa altura ouvi a dedicação de um disco a um ouvinte da seguinte forma:
    “E agora, para LUÍS MISERÁVEL POUCA SORTE, o disco do Roberto Carlos, “Eu te amo, Eu te amo, Eu te amo””.
    Sempre teve alguma sorte, pois dedicaram-lhe o disco que pretendia!
    De Massangulo demos um salto até Maniamba onde nos mantivemos até 5 de Janeiro de 1970 e onde estivemos sob as ordens do Batalhão de Caçadores 2853, em Macaloge.
    O maior desastre da minha Companhia ocorreu neste período de tempo, mais precisamente no dia 14 de Agosto de 1969 com o rebentamento duma mina tendo como resultado o falecimento de 3 camaradas (António Leite Costa, António Manuel Ferreira e Lino Ribeiro da Silva) e 10 feridos (Ribeiro, Riquito, Reis, Brás, Patilhas, Barbosa, Lima, Cunha, Teixeira, Matos) e ainda 4 nativos também feridos.
    A 5 de Janeiro de 1970 deixamos Maniamba e regressamos ao Catur onde permanecemos cerca de 50 dias, aguardando ordens para seguir para Sone, o que aconteceu a 26 de Fevereiro de 1970. O Batalhão que agora aqui se encontrava era o B.Caç.2895.
    Após alguns dias de viagem chegamos a Sone a 6 de Março de 1970, depois de ter passado por Nacala, Porto Amélia, Beira e Sena.
    Foi um tempo agradável aquele que passamos em Sone, terra banhada pelo rio Zambeze.
    Este sossego e bem-estar foi abruptamente interrompido a 25 de Maio de 1970, pois tivemos que ir para Furancungo em mais uma intervenção e que se prolongou até 13 de Julho de 1970.
    A 15 de Julho de 1970 já estávamos novamente todos em Sone e aqui permanecemos até 21 de Agosto de 1970, altura em que iniciamos a nossa tão desejada viagem de regresso à Metrópole, passando pela cidade da Beira onde embarcamos no navio Niassa. Seguiram-se as cidades de Lourenço Marques, Moçâmedes, Luanda, Funchal e, finalmente, Lisboa a 16 de Setembro de 1970.
    Nesse mesmo dia e após as cerimónias militares relativas à chegada, partimos de comboio para Chaves, tendo lá chegado pelas 3h da manhã do dia 17 de Setembro de 1970, onde ninguém do B.Caç.10 nos esperava. Merecíamos um pouco mais de respeito e atenção. Aliás, ilustrando o que acaba de ser dito e, volvidos estes anos todos ainda me interrogo sobre os motivos que levaram o B.Caç.10 (nossa Unidade Mobilizadora) a não fazer atempadamente a competente comunicação à C.Caç.2418 da minha promoção a 2º Sargento Miliciano já que a mesma tinha sido publicada, em devido tempo, na Ordem do Exército nº 19, 3ª Série, de 10/07/70 – pág. 807 – onde se lê:
    “Julho: Promovido a 2º Sargento Miliciano S.S., em 10, contando a antiguidade desde 31/03/70, com direito aos respectivos vencimentos desde aquela data”.
    Não é que essa circunstância me tivesse afectado em demasia, mas que teria algum sabor muito pessoal, lá isso era verdade! Por via dessa omissão, chegado à Metrópole, requeri e recebi todos os retroactivos que me eram devidos. Disso não fui prejudicado. Esta circunstância denota um certo laxismo e inércia por parte de quem tinha a obrigação de fazer a competente comunicação, em devido tempo!
    Aqui terminou a minha Caminhada, onde só encontrei amigos que ainda hoje muito prezo. Seguiu-se a passagem à disponibilidade.
    Um Abraço para todos do amigo
    Fernando Lopes Julho 2016

    Comentários
    Caro amigo Fernando Lopes: Felicito-o pela narrativa e também pela sua Promoção... As gentes do B.Caç.10 deviam andar muito ocupadas, por cá..., durante a nossa estadia por lá... Por isso devem ter ficado muito admirados quando, em 17 de Setembro de 1970, pelas 03 horas lhes aparecemos "inesperadamente" na Estação da CP de Chaves, chegados num TGV! E, por fim, só nós dois (julguei que tinha sido só eu...) ficámos "presos" até ao dia seguinte. Houve quem não compreendesse a minha recusa em ir ao Convívio lá realizado...
    Acácio Gomes Tomás (Ex Capitão)

    Esta descrição da nossa passagem, por terras africanas, foi das mais pormenorizadas que encontrei. Gostei! Um abraço ao meu grande amigo LOPES.
    Balagueiras (ex Furriel)

    Olá companheiro. O meu abraço de muita amizade. Tu foste (e ainda és) um elemento muito importante da nossa história não só pelo teu trabalho concreto mas, e principalmente, pela tua serenidade, disponibilidade, afabilidade que muito contribuíram para a estabilidade psicológica de todos nós. Tenho de ti, e mantenho, a imagem de um Homem muito nobre. Adorei e registei o teu "relatório militar"... espectacular!
    Carvalho (ex Furriel)

    A SAÚDE NÃO TEM COR
    Em aditamento e na sequência do por mim já exarado apraz-me consignar o apoio e assistência que foram prestados a quem se abeirava do nosso Posto de Socorros a pedir ajuda, obviamente dentro dos escassos recursos de que dispunha a C.Caç.2418, que eram pouquíssimos.
    Estivemos em Massangulo de 15.08.68 a 21.07.69.
    A nossa Companhia tinha uma verba mensal destinada à saúde, de 1.500$00 que não podia ultrapassar. Ora, havia meses em que sobravam alguns medicamentos e, por via disso, era-nos possível dar algum apoio às populações. Assim, à porta do Posto de Socorros vinham chegando, diria diariamente, pessoas a solicitar ajuda para ultrapassar problemas de saúde diversos, que as vinham apoquentando. Fazíamos o nosso melhor, e penso que mais ou menos bem, pois todos os dias o Posto de Socorros tinha um grupo enorme para ser atendido. Se assim não fosse, não compareceriam com aquela assiduidade!
    Mais abaixo do nosso quartel (3Km, talvez) havia uma Missão Católica de padres italianos (Congregação Consolata) que tinha ao seu serviço uma Irmã Enfermeira que, com a sua dedicação, abnegação, espírito de sacrifício e, acima de tudo, com muita caridade, ia fazendo autênticos milagres à população de Massangulo face aos escassos meios que me dizia possuir. De tal sorte que, por indicação do Alferes médico Joaquim Ribeiro, começamos a dispensar, o pouco que tínhamos, alguns medicamentos e outro material que não nos fazia falta. Cheguei, juntamente com a minha equipa de enfermeiros, a pegar em alguns rolos de gaze, fazendo compressas que, depois de devidamente acondicionadas, eram entregues na missão. A Irmã não se coibia de mostrar o seu agradecimento pois tudo dava jeito, porque o que tinham em stock era o “NADA”. Só gente como ela, com aquele espírito altruísta, é que conseguiria ultrapassar tantas dificuldades e vicissitudes.
    É de todo em todo incontornável salientar a alegria que aquela Irmã Enfermeira colocava nos serviços que prestava, pois sabia que o que fazia o era a bem do próximo por imperativo do seu espírito missionário e alma generosa.
    A certa altura da nossa permanência em Massangulo recebemos umas vacinas contra a Varíola para administrar às populações (leia-se: crianças), o que fizemos, designadamente às de Chamande. Toda a nossa equipa de enfermagem se viu envolvida neste acto, bem como fomos acompanhados por vários elementos de C.Caç.2418, concretamente do Cap. Acácio Tomás, que presidiu a todos estes acontecimentos. As crianças choraram alguma coisa (às vezes muito) mas tudo passou e decorreu bem e com a maior normalidade, aliás tudo em conformidade com o que tínhamos delineado.
    Certo dia apareceu no Posto de Socorros um sujeito, já de certa idade (um cocuana), que ao correr atrás de um macaco que lhe tinha invadido a machamba e que lhe estava a dar cabo do milho, tropeçou num tronco de árvore e fez um golpe profundo numa perna. Vi-o, tratei-o suturando a ferida e lá foi sua à vida com a recomendação de que deveria regressar, passados uns dias, para lhe serem retirados os pontos. Dito e feito. Passados os dias combinados apareceu, fiz-lhe o curativo e quando dava o assunto por encerrado, tirou duma pequena trouxa meia dúzia de ovos para me oferecer. Agradeci, disse que não era preciso, mas fez questão que aceitasse, o que fiz. Perguntei-lhe porque fez aquilo, tendo-me dito que o fazia por estar muito grato pelo tratamento que lhe fizera “pois tinha ficado muito bem” (sic). Seis ovos para nós, eram simplesmente seis ovos; para ele eram uma fortuna pois galinhas deveria ter muito poucas, aliás como todos os outros. Eram pessoas muito pobres. Encheu-me, no entanto, o coração com toda aquela simpatia! Ganhei o dia!
    Em Maniamba (21.7.69 a 5.1.70) o contacto com a população local, em termos de enfermagem, foi nulo dado que tal apoio era prestado pela companhia residente.
    Em Sone (6.3.70 a 21.8.70), embora em escala muito inferior em razão do que se passara em Massangulo, fomos dando igual apoio conforme nos era solicitado. Era uma povoação mais pequena e, portanto, pedidos de atendimento eram muito menores.
    Neste período de tempo demos um “salto” a Furancungo (25.5.70 a 13.7.70) para mais uma intervenção, tendo os nossos Serviços de Saúde ficado confinados aos da sede do Batalhão. Daí não termos tido qualquer contacto com as populações em termos de apoio e assistência.

    Para mim A SAÚDE NÃO TEM COR

    Fernando Lopes Julho 2017



    ESTERILIZADOR DE AGULHAS E SERINGAS


         Ao avocar este esterilizador de agulhas e seringas e por na altura dos acontecimentos ter sido considerada coisa despicienda, sem relevância e com pouco ou nulo interesse no âmbito militar, passei a ficar como um mero e zeloso "fiel depositário" desta relíquia/lembrança, que é de toda uma esforçada Companhia (C.Cac.2418). 
         Ao cabo de uma série de operações nos primeiros meses em Massangulo, veio a C.Cac.2418 a ter aos seus ombros a operação "S. Jorge Z", a 26.2.1969, que tinha como objetivo o "Assalto e destruição da Base Geral do Catur". 
    Dada a força do inimigo (constava que era composta por cerca de 300 elementos), a nossa Companhia mobilizou-se com todos os militares disponíveis. Até os da "ferrugem" (mecânicos) se envolveram para fazerem parte desta missão! A descrição de toda esta operação está brilhantemente plasmada na página 92 e seguintes do livro "Companhia de Caçadores 2418", de Fernando Carvalho, onde de pode ler: "Foram encontrados para além de diverso armamento, muitos documentos, pastas, fardamento, material militar e muito mais ". 
         Por analogia ao que ocorre no desporto, concretamente no futebol, quando um jogador faz num jogo 4 (Poker) ou 3 golos (Hat-Trick) guarda a bola como recordação. Não é o seu valor que está em causa, é, isso sim, o seu significado que ela carrega. Aqui foi um pouco isso ou foi isso mesmo. Com este simples gesto, todo ele inofensivo, mantem-se a "CHAMA" que nos uniu em tão difíceis momentos e situações por terras de Moçambique há mais de 50 anos. 


    Fernando Lopes Julho 2019


    04.Testemunho de Carlos Maldonado NETO
    Alferes 4º Grupo Combate

    Experiência militar
    Breve resumo da minha experiência militar até à formação do grupo dos BOINAS PRETAS (4º pelotão da C.Caç.2418).
    A 10 de Abril de 1967 iniciei uma viagem duma aldeia transmontana (Paços de Lomba) até Mafra (EPI) para frequentar um curso (C.O.M.) com duração cerca de seis meses (Abril a Setembro).
    Em Outubro do mesmo ano fui colocado em Elvas (B.Caç.8), como Aspirante Miliciano a dar formação aos Soldados Recrutas.
    Entretanto sou mobilizado para a guerra colonial e chamado a prestar provas de selecção, em Lamego, em Operações Especiais. Tendo sido seleccionado frequentei o curso de Rangeres nos primeiros meses de 1968.
    Em Abril do mesmo ano fui para Chaves (B.Caç.10) onde começou a preparação dos militares que formaram o Grupo dos Boinas Pretas (4º Pelotão da C.Caç.2418).
    Dia 21 de Julho 1968 é a partida da cidade de Chaves, como Alferes miliciano coadjuvado por três grandes companheiros, os Furriéis, Fernando Carvalho, Francisco Dias e Rui Batista e com os mais militares Cabos e Soldados a caminho de Lisboa, onde nos esperava o paquete Vera Cruz no qual viajamos para Moçambique onde cumprimos uma comissão na guerra colonial 1968/1970.
    É meu dever referir que a camaradagem, solidariedade e amizade do Grupo BOINAS PRETAS eram de tal forma que ainda hoje nos consideramos a nossa SEGUNDA FAMILIA.
    Obrigado Companheiros BOINAS PRETAS.
    Foram estes sentimentos do grupo dos BOINAS PRETAS que sempre existiram e continuam a existir em todos os COMPANHEIROS QUE PERTENCEMOS À C, CAÇ. 2418.
    Maldonado Neto (ex Alferes)

    Maniamba
    No dia 21 de Julho de 1969 saímos de Massangulo, onde estivemos cerca de onze meses em modo operacional denominado quadricula, com destino a Maniamba e passando a um modo operacional denominado intervenção, tendo como teatro operacional a famosa serra Jéci banhada nos seus sopés pelo famoso rio Messinge. Era uma região muito controlada pela Frelimo (o então inimigo). Mesmo sendo zona bélica mais perigosa, os militares da C.Caç.2418 mantinham boa moral e força anímica. Dia 14 de Agosto de 1969 sofremos a maior perda, com uma mina anticarro, que causou três mortos e doze feridos. Apesar da quebra na moral dos militares da C.Caç.2418, a força anímica prevaleceu pois a resposta a operações a efectuar continuava a mesma “já devia estar feito”. A perda dos amigos foi muito dolorosa. Aproximava-se o Natal de 1969 em Maniamba. O “modus vivendi” era em acampamento de tendas de campanha, abrilhantado pela alegria festiva de dois ou três discos do Teixeirinha que durante este tempo de campismo alegravam os combatentes.
    Poucos dias antes do dia de Natal recebemos a visita do Movimento Nacional Feminino. Sendo o primeiro a chegar à pista onde aterraram dois aviões, a representante do M. N. F., após as saudações, fez-me as perguntas da ordem: 1ª. Sobre a moral dos militares, 2ª. Sobre o Natal de 1969 que estava próximo. A resposta â 1ª é óbvia felizmente todo o pessoal, da C.Caç.2418, estava moralizado até porque estava a chagar ao fim o período de intervenção, a resposta à 2ª foi com mágoa pela festividade familiar da Quadra Natalícia visto que para a Ceia de Natal só havia rações de combate. A Senhora do M. N. F. afastando-se por um momento entrou no avião que a transportou regressando poucos minutos depois a dar a notícia que o problema da Ceia de Natal estava resolvido. A Senhora do M. N. F. despediu-se pois ainda ia a Montepuez visitar outros militares também muito isolados. Pouco mais de uma hora depois aterraram na mesma pista táxis aéreos transportadores de tudo para uma grande Ceia Natalícia (bacalhau, batatas, hortaliça, vinho do porto, bolo-rei, uvas passas, etc., etc. …). Quando a Senhora do M. N. F. se dirigiu ao avião para a viagem de regresso apercebi-me que havia um jovem no grupo. Mais tarde tive conhecimento das personalidades que nos visitaram nesse Natal de 1969 em Maniamba. Cumpre-me prestar homenagem à Dra. Maria das Neves que se fazia acompanhar pelo seu filho Marcelo Rebelo de Sousa. Em Janeiro de 1970 dia 5 terminou a nossa intervenção operacional em Maniamba até que, enfim, vamos descansar um pouco!... Os militares, com a alegria de quem vai para uma festa, prepararam as suas bagagens bélicas para o embarque na COLUNA DO AMOR.
    Maldonado Neto (ex Alferes)


    Ainda sobre este episódio da presença, da Dra. Maria das Neves e de Marcelo Rebelo de Sousa, na pista de Maniamba tive a oportunidade de dialogar directamente com o Prof. Marcelo, ainda professor universitário e comentador na TV, em Celorico de Basto, e mais recentemente, como Presidente da República, no Palácio de Belém. 
    No contacto em Celorico de Basto, aquando do nosso convívio em 2008, tive oportunidade de lhe referir que a senhora sua mãe nos havia visitado em Maniamba, alguns dias antes do natal de 1969. Surpreendentemente o Prof. Marcelo respondeu também lá estava nesse dia e que se lembrava que ficou junto ao táxi aéreo, enquanto a mãe falava com militares, e até que estava de calções. Lembrava-se também que visitaram outra companhia, também muito isolada, em Montepuez, no Cabo Delgado. Efectivamente eu tinha visto um jovem de calções junto ao avião mas não sabia quem era. Esta feliz lembrança fez-me solicitar-lhe uma foto sua daquela época, para incluir nas recordações da nossa companhia, e sei que diligenciou no seu secretariado para me facultar esse pedido tendo referido a foto de família naquele natal (1969).
    É com imenso orgulho e prazer que incluo, a foto que me foi oferecida, neste meu testemunho.

    Obrigado Sr. Presidente
    António Jorge Rebelo de Sousa   Pedro Miguel Rebelo de Sousa         Marcelo Rebelo de Sousa

                     aria das Neves Fernandes Duarte    Baltasar Rebelo de Sousa


    Estado psicológico dos militares da C.Caç.2418 durante a campanha em Moçambique e presença do movimento nacional feminino, em Maniamba, no natal de 1969
    No sistema em que o nosso País se encontrava, com a noção de fronteiras de Portugal entre as quais se incluíam todos os Territórios de Além-Mar onde as Lusas Caravelas marcaram presença e os Heróis Marinheiros registaram a identidade, tornava-se necessário lutar pela Pátria. Com os ensinamentos impostos pelo regime à juventude, através da Mocidade Portuguesa e também dos condicionalismos vindos da Legião Portuguesa, os mancebos eram de tal forma mentalizados para o serviço militar obrigatório, que nos raríssimos casos de “não apurados” se sentiam inferiores (não serviam para nada, nem para a tropa).
    A consciencialização da verdade abriu as mentes de todos, Pais, Mães, Irmãos, Namoradas e Esposas, quando começaram a chegar os primeiros mortos da Guerra Colonial.
    O inevitável aconteceu, mais um grupo se formou no B.Caç.10 em Chaves tendo em Abril de 1968 começado a instrução, finalizando com o I.A.O. (Instrução de Adaptação Operacional) e ficou completo o efectivo da C.Caç.2418. Foi assim que nasceu o embrião e durante mais de dois anos germinou dando lugar à amizade familiar que hoje nos une. Após as viagens já descritas, comboio de Chaves a Santa Apolónia, paquete Vera Cruz de Lisboa a Moçambique (Nacala) e comboio até Catur, teve início a nossa primeira coluna militar em teatro de guerra que nos levou às primeiras instalações, quartel em Massangulo, zona operacional 100%, onde assentámos arraiais por alguns meses.
    A partir de Massangulo tivemos o batismo de fogo, primeiras operações acompanhados pelos mais experientes e para conhecimento da zona de actividade da C.Caç.2418. Os Velhinhos, cumprida a sua missão retiraram para o descanso bem merecido e regresso tão desejado ao cais de Alcântara. Nas primeiras noites a dormir com o pijama de camuflado, tendo por leito o chão moçambicano e por tecto o céu de África Oriental, algumas vezes surpreendidos por chuvas torrenciais, ou noites tropicais que mais pareciam alimentadas pelos ares frios do nordeste transmontano, tudo era confusão desde o barulho da fauna nocturna até às luzes intermitentes dos insectos voadores e luminosos (como os pirilampos). Com o passar do tempo, conhecimento dos locais mais ou menos perigosos verificava-se cada vez mais o à vontade na moral dos militares. Após os primeiros contactos bélicos aparece a consciencialização dos perigos a que estávamos expostos, emboscadas e minas quer antipessoais quer anticarro. Foi em Massangulo onde sofremos a primeira baixa, morto por acidente e também a primeira mina anticarro que por muita sorte provocou apenas um ferido ligeiro. Estes acontecimentos provocaram nos militares da C.Caç.2418 um espírito mais aguerrido. Nunca compreendi se o aumento da agressividade guerreira seria provocada por sentimento de vingança ou de autodefesa. Porém a boa relação com as populações continuava e manifestava-se com a ajuda prestada, pelos militares, em melhoramentos e construções de casas e aldeias, tendo sido construída uma nova com o nome de Aldeia dos Ananases – hoje Kitamba, os serviços médicos e de enfermagem prestados pela nossa equipa de saúde e também os ensinamentos escolares. Foi a estada em Massangulo que mais nos marcou positivamente no aspecto social.
    No dia 21 de Julho de 1969 saímos de Massangulo, onde estivemos cerca de onze meses em modo operacional denominado quadricula, com destino a Maniamba e passando a um modo operacional denominado intervenção, tendo como teatro operacional a famosa serra Jéci banhada nos seus sopés pelo famoso rio Messinge. Era uma região muito controlada pela Frelimo (o então inimigo). Mesmo sendo zona bélica mais perigosa, os militares da C.Caç.2418 mantinham boa moral e força anímica. No dia 14 de Agosto de 1969 sofremos a maior perda, com uma mina anticarro, que causou três mortos e catorze feridos. Apesar da quebra na moral dos militares da C.Caç.2418, a força anímica prevaleceu pois a resposta a operações a efectuar continuava a mesma “já devia estar feito”. A perda dos amigos foi muito dolorosa. Aproximava-se o Natal de 1969 em Maniamba. O “modus vivendi” era em acampamento de tendas de campanha, abrilhantado pela alegria festiva de dois ou três discos do Teixeirinha que durante este tempo de campismo alegravam os combatentes.
    Poucos dias antes do dia de Natal recebemos a visita do Movimento Nacional Feminino. Sendo o primeiro a chegar à pista onde aterraram dois aviões, a representante do M.N.F., após as saudações, fez-me as perguntas da ordem: 1ª. Sobre a moral dos militares, 2ª. Sobre o Natal de 1969 que estava próximo. A resposta à 1ª é óbvia felizmente todo o pessoal, da C.Caç.2418, estava moralizado até porque estava a chegar ao fim o período de intervenção. A resposta à 2ª foi com mágoa pela festividade familiar da quadra natalícia visto que para a ceia de Natal só havia rações de combate. A senhora do M.N.F. afastando-se por um momento entrou no avião que a transportou regressando poucos minutos depois a dar a notícia que o problema da ceia de Natal estava resolvido. A senhora do M.N.F. despediu-se pois ainda ia a Montepuez visitar outros militares, também muito isolados. Pouco mais de uma hora depois aterraram na mesma pista táxis aéreos transportadores de tudo para uma grande ceia catalícia (bacalhau, batatas, hortaliça, vinho do porto, bolo-rei, uvas passas, etc., etc. …). Quando a senhora do M.N.F. se dirigiu ao avião para a viagem de regresso apercebi-me que havia um jovem no grupo. Mais tarde tive conhecimento das personalidades que nos visitaram nesse Natal de 1969 em Maniamba. Cumpre-me prestar homenagem à Dra. Maria das Neves que se fazia acompanhar pelo seu filho Marcelo Rebelo de Sousa.
    Em Janeiro de 1970, dia 5, terminou a nossa intervenção operacional em Maniamba até que, enfim, vamos descansar um pouco! Os militares, com a alegria de quem vai para uma festa, prepararam as suas bagagens bélicas para o embarque na COLUNA DO AMOR. Regresso definitivo para Catur e daí para a pacífica zona de Sone. Fomos ainda fazer uma intervenção operacional de 45 dias a norte de Tete, concretamente em Furancungo, mas já pensando no fim da comissão em Moçambique.                            
    O objectivo permanecia sempre o mesmo que era abraçar o Cristo Rei e passar de barco a Ponte Salazar. Era a ansiedade muito forte do regresso e começava a contagem decrescente quando as horas pareciam dias.  
    Maldonado Neto (ex Alferes)
      

    05.Testemunho de Manuel Martins PORTELA
    1ª cabo - 1º Grupo Combate

    Caros companheiros e amigos ex-militares da C.Caç.2418, sou o Portela ex-1º Cabo do 1º Pelotão- é sempre com regozijo que vos encontro e falo para vós. Nós somos uma família sólida, e isso é o resultado da vida difícil que tivemos. Tivemos que estar unidos para sobreviver- má comida, por vezes rações de combate já velhas e fracas, falta de água, ou seja, por vezes falta de condições dignas para um ser humano.
    A todos eu cumprimento, mas não posso nem devo deixar neste momento de relembrar os nossos companheiros que tombaram (Mendes, Costa, Ferreira e Lino) dando a vida pela pátria, nem os colegas que caíram já na vida civil, alguns vítimas da guerra, como exemplo o Joaquim António. Que o bom Deus lhe dê a digna paz a que tem direito. Lembrar também os que vieram feridos para a metrópole e que carregaram mazelas para toda a vida. Todos são heróis, mas heróis semi abandonados.
    Queria cumprimentar também o amigo ex-Furriel Gama. Nunca veio aos nossos convívios mas que encontrei em Cahora Bassa. Era sargento e liderava uma secção de homens (mistos), eram uma espécie de sipaios.
    Vou contara-vos uma pequena história.
    No dia 5 de Maio de 1969, numa segunda-feira, fomos com a gente da população à mandioca, penso que no Maleta. De regresso, ao chegarmos às bananeiras, paramos e fomos às bananas. Depois viemos embora e fomos comer, pois estávamos cheios de fome. De repente ouve-se barulho e chega também um nativo de ginga a gritar que havia problema. Subimos para as viaturas e pouco tempo depois estávamos a socorrer a C.Cav.2415 que tinha caído numa emboscada.
    Anos mais tarde, penso que em 2011, no convívio de Barcelos, um colega que por sinal já morreu, o Vilela, e que por acaso foi o seu último convívio, chegou à minha beira e perguntou se me lembrava do dia da emboscada à 2415 do Lione. Disse que sim e ele disse: “ainda hoje me custa a acreditar que deixamos as viaturas e fomos às bananas totalmente descontraídos e eles estavam lá. Eu acho que sim, eles estavam a ver-nos.
    De seguida vou contar-vos uma história passada comigo e da qual jamais me irei esquecer. A minha mãe era uma mulher de fé, duma crença absoluta. Antes de eu me despedir, na ida para Moçambique, ela entregou-me uma medalha (a medalha milagrosa) e disse-me: “Anda sempre com ela, nunca a abandones”. Isto em a propósito do seguinte: no dia 14 de Agosto de 1969 eu estive duas vezes em cima da segunda Berliet, a tal que foi ao ar, e duas vezes desci. Desci a primeira porque o capitão queira falar connosco. Desci a segunda porque um Furriel me disse: “tu e a tua esquadra descem”. As viaturas saíram e algum tempo depois rebentou a fatídica mina. O mesmo Furriel veio ter comigo e perguntou se eu ainda estava chateado. Sendo um homem crente, acredito que à minha saudosa e santa mãe devo a vida.
    Passados aí uns 40 anos e já nos sessentas comecei a pensar numa futura reforma e aí vi que alguma coisa não batia certo. Comecei a ficar revoltado. Filiei-me numa associação de ex combatentes e lá vi este painel:

    Fazendo esta retrospectiva sobre a guerra no ultramar achei que foi injusta, cruel para os milicianos e combatentes, estúpida e de interesses. Mas foi uma mina para os militares de carreira. Nos fomos o tapete vermelho e o trampolim para as suas promoções e também somos nós que tivemos as baixas (acima de 9.000) e os estropiados.
    Quando fizeram a chamada nós dissemos “pronto”. Agora a pátria não nos reconhece.
    Na associação de ex combatentes lutamos por causas. Por uma rede nacional de apoio, que nos dê apoio na sociedade e na saúde, com consultas e tratamento dos traumas psico traumáticos e outros. Lutamos por um cartão e estatuto de ex combatente para que comecem a tratar-nos como pessoas de bem.
    Lutamos pela pátria, de graça. Perdemos emprego, dinheiro, família e saúde. Merecemos o devido respeito e consideração.
    Manuel Portela - Abr 2017
    1º Cabo-1º Grupo de Combate


    06.Testemunho de Lino Gomes Ribeiro

    Condutor

     A minha estória da vida militar em Moçambique

    Em primeiro pedia a Deus pelo regresso a Portugal. 

    Em segundo lugar assumi ser responsável por tudo quanto me fosse destinado.

     Fui incorporado, em Fevereiro de 1968 no CICA1 (Centro de Instrução de Condução Auto Nº 1), no Porto, onde fiz a recruta e, em Abril do mesmo ano, no RI6 (Regimento de Infantaria 6), também no Porto, para a formação da especialidade de Condutor.

    Acabada a formação sou deslocado para o BC10 (Batalhão de Caçadores 10), em Chaves, e integrado da C.Caç.2418, já constituída e mobilizada para Moçambique, quando iniciava o I.A.O. (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) que era dos últimos exercícios antes de embarcar. Lembro que o comandante utilizou todos os especialistas (como eu) como “turras”, e, portanto, inimigos dos Grupos de Combate, com a condição para os que se pudessem escapar dos “ataques” poderiam regressar ao quartel mais cedo… safei-me rapidamente.

    Embarcamos para Moçambique em 27 de Julho de 1968.

    Após a nossa chegada a Massangulo (15.08.1968) fui nomeado condutor do Comandante da Companhia (Capitão Acácio Tomás). Respeitava e cumpria tudo quanto ele me exigia e, quando sem compromissos, colaborava com os meus camaradas em deslocações à povoação e outras necessidades. Tudo isto sob o “cutelo” do responsável da Secção Auto (Furriel Filipe) que não gostava dos meus privilégios nem da minha liberdade e muito menos da minha relação de amizade com os outros camaradas do mesmo sector e mesmo de outros…, mas eu sentia-me protegido.

    Fui voluntário para tudo. Gostava de conhecer sempre mais e, por isso, não me dedicava apenas aos meus serviços diários tais como ser o condutor de serviço do Capitão, do médico e dos desenrascanços especialmente para os camaradas. Fui voluntário, por duas vezes, inserido em Grupos de Combate para batidas na zona do Caracol.

    Em 3 de Dezembro de 1968 fui para Vila Cabral onde estive 45 dias ao serviço de um grupo de engenheiros que faziam pesquisas, na área agrícola, para implantação de futuros aldeamentos ou até de futuros colonos. Por essa altura, no dia 17 de Dezembro, encontrei naquela cidade um amigo, também em serviço militar, que era da minha terra (António Nunes). Com ele partilhei bons momentos naquela época e a nossa amizade ainda continua.

    Claro que passei o Natal de 1968 em Vila Cabral.

    De regresso a Massangulo continuei nas mesmas tarefas, tais como levar a comida ao médico e esposa, quando aquele estava em serviço na Missão de Nª Sra. da Consolata em apoio à população local e para consultas aos militares no aquartelamento de Massangulo, levá-los aos aldeamentos onde faziam visitação psicossocial junto da população, levar o fotógrafo à Missão para fazer fotos dos colegas e outros serviços.

    Um dia, numa quarta-feira, houve um acontecimento inesperado. No quarto dos condutores colocamos, no topo da porta, uma terrina de sopa já azeda para o primeiro “felizardo” que ali entrasse. Curiosamente o Capitão foi-me chamar e levou com aquele “manjar” pela cabeça abaixo. Logo lhe dissemos que não era para ele, mas sim para o mainato. Não fomos castigados porque o Capitão tinha mesmo de sair pelo que se foi lavar e mudar de roupa. Não pudemos de deixar de rir com esta cena. De seguida levei o Capitão até ao aldeamento para contactar o Sr. Maia, pessoa respeitada da aldeia e com bons contactos.

    Mais tarde fui surpreendido, por um mainato, que me trouxe um recado: “para ir à Missão que a esposa do senhor doutor me queria falar”. A senhora transmitiu-me que eu iria para os transportes de Vila Cabral e mais três colegas (o Barreto, o Alfredo e o Armindo, chamado o “150”) mas que eu não ficava lá porque tinha um lugar especial para mim.

    Fiquei ansioso e, no dia seguinte à noite, quando me preparava para dormir, o Alferes Farinha, da Secção do SPM em Vila Cabral, chamou pelo meu número ao que respondi imediatamente e disse-me: “tu tens uma grande madrinha de guerra” ao que respondi que “não era madrinha de guerra, era minha prima”.

    Amigos, daí em diante para mim tudo mudou com os novos colegas de serviço, novos ambientes e convívios.

    Em Vila Cabral fui incorporado no SPM (Serviço Postal Militar) onde havia três viaturas para todo o trabalho de distribuição daquele sector: correio, encomendas e telegramas normalmente destinados aos Batalhões e suas Companhias, Comandos, Marinha, Manutenção Militar, aeroporto, Comando de Sector, etc. Em resumo cobria toda a área do Comando do Sector A-Niassa, sediado em Vila Cabral. A entrega de correio para localidades próximas era feita por viaturas, mas, para lugares muito distantes, era usado o táxi aéreo da TAN (Transportes Aéreos do Niassa) no qual fiz muitas viagens.

    Um dia resolvi usar o meu direito a férias, quando a nossa companhia foi destacada para intervenção em Maniamba para onde fui e estive 15 dias. Por duas vezes fui voluntário, inserido num Grupo de Combate, para operações na Serra Jéci em que destruímos palhotas e cultivos. Logo na primeira operação, no regresso e ao passar o Rio Messinge, fomos atacados pelos turras, ripostamos e não houve vítimas. Estava previsto regressarmos “pelo nosso pé” até ao aquartelamento. Porém a caminhada e tiroteio alteraram a situação. Depois de recompostos, de todos aqueles acontecimentos, o Alferes Neto pediu dois voluntários para fazerem cerca de 25 km a pé, até ao aquartelamento da C.Art.2495, que era uma Companhia também instalada em Maniamba, para pedir viaturas e recolha do pessoal que estava todo estourado. Mais uma vez voluntário eu disse: “eu vou e o Fagundes também”. Lá fomos, bem atentos a todos os ruídos ou sinais, sendo que uma boa parte da caminhada foi feita de noite. Ao chegarmos ao aquartelamento fomos confrontados com um problema: uma sentinela grita “Alto! Quem vem aí? A senha?” E nós não sabíamos a “senha” nem a “contra-senha” … O que nos valeu foi eu ter dito o nome do cozinheiro daquela unidade e era meu conhecido. Então a sentinela chamou por ele e tudo se resolveu. Eu e o Fagundes fomos para as nossas tendas e as viaturas saíram para recolher os nossos camaradas.

    Terminadas as “férias” regressei ao meu posto em Vila Cabral onde continuei com os meus serviços e voluntariados. Viajei até Tenente Valadim e, de uma outra vez, de Jeep fui a Chiponde, na fronteira do Malawi, onde fui levar um camarada. Nessa viagem, no regresso, e após 20 Km, aparecem-me três nativos à frente da estrada e eu pensei: “estou lixado”. Lembrei-me de um truque: nas viagens com o médico eu transportava sempre uma caixa/gaveta com medicamentos… talvez me pudesse valer. Um dos homens pergunta: “o nosso onde foi?”. Eu não respondi e fui imediatamente à gaveta donde retirei e lhe dei uma mão cheia de comprimidos… ficaram contentes. Então disse-lhes que o médico estava em Chiponde e pediu para ir buscar uma injecção para um tratamento urgente. Então disseram: “vá depressa que não lhe irá acontecer nada”. Arranquei e pensei: “desta já estou safo!” mas, ao mesmo tempo, que poderia ter sido capturado e desaparecido do mapa. Uf!!

    Com a convivência e amizade dos colegas mais chegados organizamos uma festa de natal de 1969. Todos condutores dos transportes e especialistas do Sector (eu incluído), arranjamos tudo quanto foi necessário para a uma boa noite de natal: barril de vinho, fardo de bacalhau, uma caixa com 50Kg de sardinha, frangos, cabritos e o bom pão que os padeiros prepararam. Havia o toque de recolha, dentro do aquartelamento, à meia-noite.

    Era o oficial de dia um coronel, de quem eu conhecia alguns segredos.

    Montamos um esquema: fomos entregar-lhe uma refeição; (uma travessa de sardinha, uma sêmea previamente preparada com vapor de álcool e uma garrafa de whisky). Ele ficou maravilhado com a lembrança e disse-me: “tem cuidado que só dou uma hora mais” ao que eu disse: “tudo bem, eu vou transmitir”. Passada uma hora eu fui ver e ele estava a dormir e reparei que tinha comido poucas sardinhas, bebido um pouco de whisky e comido as côdeas do pão o que fez com ele ficasse completamente “adormecido”. Depois despejei a garrafa do whisky para que ele pensasse que o tinha bebido todo. No dia seguinte era o meu alferes do SPM que estava de serviço. Fomos lá ver e ele estava todo transpirado e perguntou o que se tinha passado: eu disse o que se tinha passado e ele disse: “obrigado pela lembrança” … mas podia ter corrido mal!!!!!

    Ainda em Massangulo;

    Um dia Capitão diz-me: “Ó pá vai à procura do Lima e trá-lo aqui”.

    Eu fui buscá-lo, porque sabia onde ele estava, e disse-lhe: “Lima anda para cima que o Capitão quer falar contigo”.

    O Lima diz-me: “já sei, ontem bati no “gravatinha” (*) e ele agora quer fazer-me o mesmo. Eu vou, mas te digo que ele em mim não bate”.

    O Lima entrou no gabinete com a G3.

    O Capitão ordenou: “põe isso lá fora!”.

    O Lima deixa cair a arma no chão provocando imenso barulho.

    O Capitão diz: “vamos falar de homem para homem”.

    O Lima responde: “assim está bem”.

    O Capitão diz: “agora vais para o abrigo, ao lado da cantina, de castigo”.

    O Lima respondeu: “está bem meu Capitão”.

    Entretanto chegou a hora do almoço e não foram render o Lima. Este deu uma rajada com a G3 que pôs toda a gente nos abrigos… creio que desta provocação nada lhe aconteceu.

     (*) O “gravatinha” era um nativo, sempre bem vestido e de gravata, que vagueava com muita frequência entre o aquartelamento e a povoação. Eram muitas as suspeitas que seria informador da Frelimo

     Lino Ribeiro – Condutor (Jun.2020)


    07.Testemunho de António Conceição COSTA

    Furriel Miliciano – Atirador/Ranger – 2º Grupo de Combate

     Cinquenta anos depois é difícil escrever, com pormenor, um testemunho da minha missão em Moçambique integrado na C.Caç.2418. Algumas situações estão bem marcadas na minha memória e dessas faço o meu testemunho.

    Massangulo - A nossa primeira baixa em 21 de Novembro de 1968

    Apesar dos avisos, aos militares para não se sentarem na traseira das viaturas, de quando em vez há tentações.

        Foi realmente o que aconteceu ao Soldado Manuel Mendes que, vá lá saber-se porquê, nos momentos livres se entretinha com a Bíblia entre as mãos. Hoje, onde estiver o espírito que o animou, que lhe sirva de algum consolo. Faço este comentário porque me encontrava na Berliet de regresso, pela picada do Chinês, de uma operação e a caminho do aquartelamento. Realmente a viatura dá um salto e o pessoal grita “caiu um!”. Imediatamente parámos e fomos em auxílio. O Mendes estava inanimado! Demos informação ao comando e continuamos o regresso ao aquartelamento de Massangulo onde tudo estava a postos – médico, enfermeiros e outros. Quase noite… pede-se a evacuação para Vila Cabral. Tal como nos foi descrito a Força Aérea… “nem vê-la!”. Os mecânicos, já noite cerrada, e a ameaçar tormenta, iluminaram o campo de futebol com os faróis dos Unimog’s e das Berliet’s, para que o “Heli” fizesse as manobras em segurança… Não foi possível! Cerca das 11 da noite dois Unimog’s partem de Massangulo rumo a Vila Cabral.  No segundo Unimog três colchões de espuma, das camaratas, e em cima o corpo do Mendes, coberto com panos de tenda porque a viagem, de mais de 90 kms até ao hospital de Vila Cabral, foi debaixo de chuva copiosa. Entregue aos cuidados do Hospital regressamos receosos pelo nosso camarada.

    Pela manhã, um rádio com a pior notícia: o soldado não resistiu.

    Onde estiveres, o meu abraço espiritual.

     Massangulo – Picada do Chinenge ou Chinês – 2º Grupo de Combate

    Depois da operação “Retorno” (26.03.1969), onde tivemos contacto com o inimigo e ao qual fizemos algum estrago, regressávamos pela referida picada até um pequeno curso de água, ladeado de boa cana de açúcar, e na sua margem direita um morro com uma altura considerável. Acampamos nesse local e esperámos as viaturas para nos recolher. De repente alguém alerta:” eles vêm para cá!”. Quase simultâneo ouve-se a “costureirinha” (AK47). Da nossa parte foi tiro, morteirada, bazucada até desaparecerem do cimo do monte, donde vinham. Tudo isto porquê? Porque, do nosso morteiro 60, nunca levávamos o “prato base” devido ao seu peso. Tomo conta do morteiro, municiam-me com as respectivas granadas (umas com carga propulsora…outras não). Cada vez que lançava uma granada o tubo do morteiro enterrava-se e aconteceu que, ao disparar uma granada e com a mão direita demasiado perto da saída, fiquei com queimaduras nos dedos e palma da mão…, mas valeu a pena!

     A caminho de Mandimba

    Sim, não eram apenas operações. Também fazíamos escolta às colunas que, provenientes de Nampula, abasteciam o Distrito do Niassa e regressavam mais tarde.

    Massangulo/Mandimba: o nosso 2ºGC escoltou a coluna de regresso a Nampula (tudo camiões pesados). Com chuva intensa, que formava aquele “matope” (barro vermelho) uma Berliet, da escolta, derrapa e atravessa-se na picada e “vai, não vai” ...foi mesmo em direcção ao barranco… ficou atascada. Não tínhamos viaturas com guincho.

    Os que iam na frente seguiram, os de trás ficaram. Zona perigosa (100%). Informado o quartel de Mandimba, mas o apoio com o guincho tarda em chegar. Está na hora de almoço em Mandimba. Um Unimog, um condutor e mais um ou dois voluntários rumamos a Mandimba e presenciamos o “aparato”. O Capitão da Companhia, em Mandimba e à frente da formatura para o “rancho”, não nos disponibilizou apoio. Zangado, chamei à atenção do meu Alferes José Carlos sobre a situação. Neste momento o Capitão Mário Silva (Comandante em Mandimba e com fama de “assentar as costuras” ao pessoal – como foi o caso do seu Vagomestre) aproxima-se de nós e ordena-me ficar calado. Não gostei e continuei a comentar a situação… ele ameaçou-me… eu respondo-lhe: “Na minha pessoa não toca! O senhor é casado, eu também!”. Fomos para o gabinete dele. Queira lixar-me as férias fazendo uma participação; dei-lhe todos os meus dados para o efeito e de seguida dirigi-lhe a palavra: “Agora também quero os dados do meu Capitão para me queixar” … o homem “engoliu em seco”.

    Quando abandonamos o gabinete já tinham saído os mecânicos da Companhia para desatascar a viatura. O meu Alferes foi portador de uma carta dirigida ao nosso Capitão Tomás que chamava à atenção “para eu ser mais comedido”.

     Maniamba – o inferno

    Em coluna, a caminho do rio Messinge e da serra Jéci, na primeira viatura (Berliet) conduzida pelo condutor Leite, carregada de cabos e soldados e eu na cabine ao lado do condutor. Quis a minha bexiga que era urgente atender à necessidade fisiológica:

    - Leite, pára aí!  

    Estávamos no morro sobranceiro àquela ponte no desfiladeiro, feita com troncos de arvore que nos impunha um certo respeito (que eu digo: se ruísse… quem não morresse da queda morreria de fome antes de chegar ao fundo). Os militares apeiam para fazer a respectiva segurança. Estou no “alívio” e ouço: “Furriel! Está aqui algo a brilhar!”. “Calma, não façam nada!” disse eu. Fui inspeccionar. Não sendo especialista de Minas e Armadilhas, mas sim de Operações Especiais (Ranger), constatei tratar-se de uma mina anticarro e ordenei ao pessoal: “Saiam de junto de mim! Vou ver o que é possível fazer”. Rebentá-la por “simpatia” estava fora de questão, porque denunciaria a nossa posição, pelo que optei pelo mais difícil: levantá-la. Mãos à obra! Perdi a noção do tempo, o suor corria em abundância, a adrenalina no máximo… com a minha faca de mato fui descavando, descavando, descavando em redor do objecto visível.  Encontrei um “monstro” verde-tropa junto com um atado de “charutos” de TNT. Nem mais, nem menos… uma bomba de Napalm de 25,5 Kgs sem detonador no bico (a bomba e os cartuchos TNT foram desmontados e trazidos para o aquartelamento)

    Não foi daquela vez, mas foi no fatídico 14 de Agosto de 1969 (estava de férias na Metrópole) que uma mina liquidou 4 camaradas e fez 17 feridos, alguns com grande gravidade. Há outra parecida com esta, mas com três granadas de morteiro 82, na mesma picada.

     Furancungo – Vila Gamito

    Reporta o livro da C.Caç.2418 que o 4º Grupo de Combate, os Boinas Pretas, fez uma viagem, de ida e volta, a Vila Gamito. Eu fiz outra, para recolha do nosso 3º GC, com o 2º Grupo de Combate. Já havia demasiados buracos, verdadeiros poços, naquele percurso picada. Gastamos mais de uma dúzia de granadas a rebentar minas por simpatia até que as ditas se esgotaram. Assim, a última mina encontrada (felizmente a última), teve de ser levantada. Avancei… era um atado de TNT e, por baixo, uma granada de mão instantânea e descavilhada.

    Felizmente estou cá para contar…Um bem-haja a todos que me acompanharam.

     Houve outros empenhos

    Ainda em Massangulo fiz um suporte articulado e amovível para, na Berliet da frente, fixar uma metralhadora preparada para fazer fogo de reconhecimento. Resultado… um radiador furado e o Furriel Filipe (responsável auto) … irado!

    Também em Massangulo fui empreendedor ao construir um alpendre à saída do quarto de alojamento dos graduados do 2º GC.

    Mas a narrativa não termina. Aqueles barris que levavam vinho ou a “água de Lisboa” … desmontei alguns e, com as aduelas, fiz cadeiras de baloiço (há fotos que testemunham) e nelas passamos momentos de bom descanso, ora lendo, ora escrevendo, conversando e ouvindo música do Rádio Clube da Beira onde, nos discos pedidos, se ouvia: “Para o David Miserável Pouca Sorte – Roberto Carlos -Te amo, te amo, te amo”.

     Camaradas e “camaradas”

    Um belo dia em conversa com o “Cabo do Lixo” (militar responsável pela limpeza do aquartelamento) este diz-me algo a que não dei importância. Nesse momento passava o Alferes Meia-Via* e ordenou-me para fazer uma participação daquele militar por ofensa verbal. E eu? Nem uma, nem duas! Nada disse, nada fiz! Perante a minha atitude o oficial elabora a participação e obriga-me a assinar aquele documento… e eu não soube como recusar. Resultado: dez dias de detenção ao Cabo do Lixo.

    *Gama Henriques

     A vingança serve-se fria

    Após um patrulhamento, em que foram envolvidos os 1º e 2º GC, enquanto estávamos à espera de ser recolhidos falava com alguns camaradas sobre o Morteiro 60 dizendo que mandaria facilmente uma granada para a crista do monte à nossa vista.

    Diz o oficial ironicamente: “É uma grande certeza!”.

    Eu? “nem é tarde, nem é cedo” … foi de imediato… executei o tiro na muche!

    No dia seguinte tinha uma caixa de cerveja 2M-Mac-Mahon debaixo da minha cama.

    Obrigado Gama Henriques.

     Antonio Costa – Furriel Miliciano (Set.2020)


    08.Testemunho de José de Jesus RIBEIRO

    1º Cabo – Atirador – 2º Grupo de Combate

    (Vítima do rebentamento de mina anticarro que ocorreu a 14 de Agosto de 1969 em Maniamba)

    Fiz parte do 2º Grupo de Combate, sob o comando do Alferes José Carlos Henriques, sendo comandante da minha Secção o Furriel Gamaliel Correia.

    Iniciei a minha vida militar em 28 Janeiro de 1968, no Regimento de Infantaria 13, em Vila Real, onde fiz a recruta e, de seguida, ingressei no Batalhão de Caçadores 10, em Chaves, onde fiz a especialidade de atirador no pelotão do Aspirante José Carlos Henriques.Quando se formou a Companhia de Caçadores 2418, nos fins de Maio de 1968 e já mobilizada para Moçambique, fui integrado definitivamente no 2º Grupo de Combate.

     Uma estória pessoal

    14 Ago 69 (5ª feira) - Operação Sagres 3

    Este dia foi particularmente marcante da minha vida. Num momento, um jovem audaz e cheio de vida, é projectado para muitos metros depois do rebentamento de uma mina na picada que nesse dia nos levava até à serra Jéci para destruição da estrutura do inimigo, a Base de Maniamba. A mina rebentou no rodado traseiro da segunda viatura. Eu fazia parte dos militares que, nessa viatura, se acomodavam na caixa de carga.

    Não consigo lembrar-me de muitos pormenores. Sei que fui projectado, provavelmente para muito longe da viatura, mas não compreendia o que tinha acontecido… sangrava e não me podia mexer. O meu fémur direito soltou-se da anca, a minha vista, do mesmo lado, sangrava e o meu nariz partido. Muitas dores, muito desespero.

    Do local do rebentamento da mina até ao aquartelamento era uma longa distância, principalmente para quem sofria de dores atrozes e muito medo do que viria a seguir.  Chegado ao aquartelamento e já identificado para ser evacuado fui, de imediato, para a pista onde já me aguardava a pêga (avião pequeno) que me transportaria, com outros camaradas igualmente feridos graves, para o hospital de Via Cabral onde estive apenas três dias porque ali não tinham recursos para tratar dos meus ferimentos.

    Também por avião sou transferido para o Hospital de Nampula onde estive internado nos dois meses seguintes. Este tempo foi apenas dedicado à recolocação do fémur na cavidade da anca. Já se suspeitava que alguns músculos ou tendões teriam ficado muito danificados no acidente, o que se veio a confirmar nos meses seguintes. Não foi utilizada qualquer cirurgia. Um ferro prendia o fémur no sentido de o fazer reentrar na anca. Perna esticada, pendurada e agarrada a um peso colocado num suporte, tipo guindaste, aos pés da cama e sem me poder mexer. Foi um tormento, durante muitas semanas, que me desesperava a ponto de desejar morrer a sofrer daquela maneira.

    Durante este período, os ferimentos na vista e nariz que foram ignorados neste hospital, iam cicatrizando… e eu nem força tinha para reclamar!

    Aqui encontrei um amigo de infância, com a função de maqueiro. Como eu não tinha qualquer mobilidade pedi que escrevesse à minha família para lhes dizer onde eu estava e que estava bem. A minha família não acreditou nesta informação porque já havia sido informada da minha morte em combate. Mais um momento difícil, para todos, que ficaria resolvido mais tarde.

    Em Outubro (1969) sou transferido para o hospital de Lourenço Marques, desta vez de comboio, com o objectivo de resolver os problemas da vista, que tinha muitos incómodos internos, e do nariz que ficou torto. Fui submetido a diversas cirurgias que resolveram estes ferimentos.

    Em Dezembro sou enviado para Lisboa sigo para umas instalações militares, perto do Hospital da Estrela, para fisioterapia. O objectivo foi a recuperação de músculos na perna e tendões, devido ao acidente, ao tipo de tratamento utilizado em Nampula e pela ausência de exercício durante quatro meses. Este tratamento ocorreu durante seis meses. Durante este tempo tive a oportunidade, nos fins de semana, de me deslocar a casa onde pude demonstrar que estava “vivo”, conviver com a família e retomar o meu namoro.

    Em Julho 1970 sou dado como apto (no ponto de vista deles) com Guia de Marcha para me apresentar no BC10, em Chaves.

    Nesta deslocação eu ia preparado para fazer o espólio e voltar à vida civil… enganei-me! Dado que a Companhia ainda estava em missão eu teria de esperar a sua chegada e só então poderia fazer o espólio. Esta situação era desesperante, mas foi minimizada com algumas influências de amigos e mesmo oficiais que me facilitavam muitos dias de ausência no quartel para convívio com a família, a namorada e até casar mesmo antes da chegada da Companhia. A Companhia chegou a Chaves, no dia 17 de Setembro de 1970.

    Finalmente o espólio, finalmente acabou a tropa.

    A minha perna, que nunca ficou estabilizada, foi-se deteriorando ao longo do tempo devido ao processo utilizado para encaixar o fémur. Em 2008 tive de colocar uma prótese de anca porque a degradação ao longo do tempo foi consecutiva.

     Uma nota final

    Não fui o único! Daquela maldita mina resultaram:

    3 Mortos: 1º Cabo António Leite COSTA, 1º Cabo António Manuel FERREIRA, Soldado LINO Ribeiro da Silva.

    17 Feridos muito graves e graves (evacuados para Vila Cabral): Eu e os camaradas Joaquim António, Alberto Reis, Joaquim Veloso, António Cunha, Lima Silva, David Oliveira, Jaime Barbosa, Manuel Teixeira, David Vilas-Boas, 4 elementos da população local, contratados como carregadores e ainda, embora sem gravidade nem necessidade de evacuação, os Furriéis Balagueiras e Pinela e o 1º Cabo Mouta.

    Os muitos graves passaram por diversos hospitais até chegar à Metrópole.

    Para além de mim foi o caso dos camaradas: Joaquim António, Alberto dos Reis e Manuel Lima e Silva.

    Uma vida difícil para quem serviu a pátria… para nada!

     José Ribeiro – 1º Cabo (Ago.2020)



    09.Testemunho de Constantino VILELA Rocha
    Soldado - 1º Grupo Combate

    Guerra do Ultramar

    Eu ainda hoje sonho;
    Com a guerra em que eu fiz parte.
    São traumas que vão aparecendo;
    De quando eu andava em combate.

    Eu já estou mentalizado;
    Para tudo aquilo que for.
    Na guerra já eu andei;
    E venha lá o terror.

    O bom e grande guerreiro;
    Conta tudo com alguma graça.
    Os combates que eu tive;
    Foram na zona do Niassa.

    Com todo os maus bocados;
    Cumprimos o nosso dever.
    Foi pena o que aconteceu;
    Que alguns tiveram que morrer.

    Em reflexo da guerra;
    Temos confraternizado; em parte.
    A união dos que ainda existe;
    Antes que no deia um enfarte.

    O dia do almoço;
    É sempre um dia de emoção.
    É um dia muito lindo;
    Mas mexe com o coração.

    Já que chegamos até aqui;
    Vamos mesmo continuar.
    Com mais força e alegria;
    Para podermos enfrentar.

    Constantino Vilela Rocha – 28.06.2011
    (Cedidos pelo Manuel Portela – Jul 2017)



    10.Testemunho de Marcelo Rebelo de Sousa

    Presidente da República Portuguesa

     O nosso Presidente da República consta da história da C.Caç.2418 aquando, acompanhando sua mãe Sra. Dra. Maria das Neves, visitou a nossa Companhia, em Maniamba - no distrito de Niassa - nas vésperas do natal de 1969 (*).

    Em Novembro de 2018 tivemos a oportunidade de lhe fazer entrega pessoal da nossa 1ª edição, que mereceu o texto que passamos a transcrever. 

    MENSAGEM DE SUA EXCELÊNCIA O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

    EVOCAÇÃO MISSÃO EM MOÇAMBIQUE

              É com muita honra e prazer que me associo a esta evocação da vossa missão em Moçambique, em anos que coincidiram, parcialmente, com a presença de meus pais e dois irmãos, exercendo meu pai a função de Governador-Geral daquela então constitucionalmente qualificada de Província Ultramarina. Mais tarde, com a revisão constitucional de 1971, passada a ser tratada como Estado de Moçambique.

    E Estado soberano desde a independência em 1975.

     Meu Pai esteve nessa também missão desde Julho de 1968 até Janeiro de 1970. E, apesar de ter sido um período muito curto, foi intensíssimo e correspondeu, porventura, ao tempo mais feliz e politicamente mais realizado da sua vida.

    Percorreu Moçambique, de lés a lés, sem parar. Reformou a Administração Pública, a Educação e, sobretudo, a Saúde, ensaiando o que viria a ser, mais tarde, o começo do Serviço Nacional de Saúde, em Portugal. Deu atenção às desigualdades sociais. Fomentou a economia e melhorou as finanças públicas.

    Tentou estreitar relações internacionais, para além dos Estados vizinhos mais alinhados com a política portuguesa da altura. Esteve no Malawi e na Suazilândia e explorou pontes de entendimento, que não tiveram o sucesso desejado, com outros Estados limítrofes, para além da África do Sul e da Rodézia, como a Zâmbia.

    Defendeu maior autonomia política, legislativa e administrativa.

    Conseguiu permanente boa relação com Comandante-Chefe General António dos Santos e com os Comandantes dos três ramos das Forças Armadas, Brigadeiros Francisco da Costa Gomes, Kaúlza de Arriaga, Diogo Neto e Comandante Tierno Bagulho.

    Visitou os nossos militares em Cabo Delgado e no Niassa, em múltiplos ensejos.

    Arrancou com Cahora Bassa, à data chamada Cabora Bassa.

    Muitas dessas e de outras deslocações foram feitas com minha mãe e meus irmãos, que lá viviam e estudavam.

               Eu, que lá passei as férias grandes e de Natal, de Agosto a Outubro de 1968 e de Dezembro a final de Janeiro de 1969, e de Julho a Outubro de 1969 e de Dezembro de 1969 a Janeiro de 1970, passei boa parte desses cerca de 10 meses a conhecer, também, Moçambique.

    Em 1968,tal como em 1969, os Natais foram vividos no Norte, junto das Forças Armadas. E o dia 1 de Janeiro na Ilha de Moçambique, onde sedeara, noutros tempos, a capital de Moçambique, e, de onde, meu pai falava, pela rádio, aos moçambicanos.

    Recordo-me muito bem do Natal de 1969, da peripécia que foi a ida, com a capotagem da avioneta numa aldeia onde aterramos, mãe e irmãos, quase à noitinha, do jantar e baile, em que dancei com minha mãe, e de que há fotografia, das palavras de meu pai aos militares presentes e ausentes, do ambiente familiar e muito caloroso daquela noite e daqueles dias.

    Bem como do dia 1 de Janeiro de 1969,na ilha de Moçambique, reconstruída por meu pai, em vários dos seus monumentos, com uma multidão afetuosa e envolvente.

    Moçambique era, e continua a ser, uma natureza lindíssima e variada, um povo fraternal e empático, um fenómeno de atração quase mágica, que nos marca para toda a vida.

    O meu pai deu a um livro de discursos lá feitos um título que resumia esse encanto único: "Grande Terra, Grande Gente".

    E eu repeti-o, ao realizar a minha primeira visita de Estado, como Presidente da República Portuguesa, precisamente, a Moçambique.

    Reencontrando a mesma Grande Terra e Grande Gente, com as quais nunca havia parado de conviver, nos anos 70, 80, 90,e no novo século, dando aulas em Maputo, e podendo afirmar, sem hesitações, ser Moçambique a minha segunda Pátria.

               Um abraço de sinceras felicitações por esta vossa obra é o que vos envio, ao alinhavar estas recordações de um tempo e de uma Terra e de uma Gente que nos foram e são comuns. Cinquenta anos depois, mas com a eterna juventude de espírito e a inquebrantável força de vontade que fez do nosso Portugal o que é e mais ninguém consegue igualar!

     Marcelo Rebelo de Sousa

    Lisboa, Palácio de Belém, 18 de maio de 2020


    (*) 012.MANIAMBA-Falando de nós e 024.TESTEMUNHOS.Carlos Maldonado Neto



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